terça-feira, 14 de julho de 2015

Roberto Freire

Reproduziremos abaixo um texto do psicoterapeuta reichiano, escritor e militante anarquista Roberto Freire (1927-2008), figura polemica nos meios "psi" nas décadas de 1980-1990.
Para quem não o conhece, Freire foi um psiquiatra paulista e um dos pioneiros, junto com José Ângelo Gaiarsa a divulgar a técnica reichiana em nosso país; tendo criado em seguida seu próprio sistema de abordagem denominado "Somaterapia", em que funde as ideias de Reich com a filosofia anarquista.
Escreveu romances e livros técnicos (Cléo e Daniel; Utopia e Paixão; Sem tesão não há solução; Ame e dê vexame; Viva eu, viva tu, viva o rabo da tatu, entre outros. Também escreveu para a televisão (A grande família e TV mulher).

Texto 1: Caçada nos esgotos do DOPS
Maio de 1964. Cela do DOPS, em São Paulo. Dez presos políticos num espaço de quatro por quatro metros: líderes sindicais e estudantis, um poeta, um físico nuclear, um policial disfarçado de bancário e eu. Porta com cadeado por fora, janela gradeada no alto da parede, pia e privada a um canto da cela. Quando a campainha tipo cigarra soava, vinha o medo. Alguém seria levado para interrogatório, geralmente com espancamento e tortura. Ouvíamos os gritos. Depois o companheiro de cela voltava ferido e em pânico. Chegou a minha vez. Queriam que traísse meu amor à liberdade e o amor aos meus amigos. Fiquei calado, bateram-me muito, mas em vão. Ainda sofrendo e sangrando bastante,escrevi isto na margem de um jornal velho, no qual anotava vários pensamentos para um livro que pretendia escrever quando saísse da prisão:
é o amor, não a vida, o contrário da morte.
No dia seguinte, decepcionado, descobri que a folha de jornal em que fazia minhas anotações tinha sido usada como papel de privada. Dois anos depois, aquela frase escrita no papel de jornal foi incluída no romance Cléo e Daniel. Nesse livro pretendi ter purgado a violência da repressão e ter podido me vingar da ditadura militar, provando, pelo menos poeticamente, ser o amor impossível na sociedade burguesa.
Quase no final da fase já de composição do livro, recordei-me por inteiro de um outro texto que também tinha desaparecido nos esgotos do DOPS. Mas, como pude constatar, não deixou nunca meu coração. É uma fala desesperada, do personagem Benjamin, falando comigo e por mim, pouco antes de sua morte:
— O amor sendo traído, mentido, negado, iludido, falsificado, destruído! Porque não são as pessoas que existem, mas a esperança de amor que há nelas. Não há nomes, não há olhares, não há gestos, não há palavras. Apenas o seu conteúdo, em promessas, intuições de amor. Não há projetos de vida, não há realizações, não há conquistas, somente essa busca cega e desesperada de salvar o frágil e único legado de Deus! A ilusão de amar. Porque a vida humana é essa imensa e grotesca caçada: cada homem tentando alcançar o germe do amor que há no outro para aprisioná-lo, para feri-lo, matá-lo. Por isso fazem-se amigos, parceiros, parentes, amantes, sócios. Porque é preciso estar mais próximo, mais ao alcance do ódio, mais perto da ilusão de amor do outro. Para a ceva, para o bote, para o crime. A humanidade é o resultado dessa caçada. Os homens estão vivos, mas o seu amor está morto. Assassinado. Um matou a possibilidade do amor no outro. A lei é essa mesma: amor por amor, para que não haja amor.
Texto 2: Para quem ainda vier a me amar
Quero dizer que te amo só de amor. Sem idéias, palavras,pensamentos.Quero fazer que te amo só de amor. Com sentimentos, sentidos, emoções. Quero curtir que te amo só de amor. Olho no olho, cara a cara, corpo a corpo. Quero querer que te amo só de amor.
São sombras as palavras no papel. Claro-escuros projetados pelo amor, dos delírios e dos mistérios do prazer. Apenas sombras as palavras no papel.
Ser-não-ser refratados pelo amor no sexo e nos sonhos dos amantes. Fátuas sombras as palavras no papel.
Meu amor te escrevo feito um poema de carne, sangue, nervos e sêmen. São versos que pulsam, gemem e fecundam. Meu poema se encanta feito o amor dos bichos livres às urgências dos cios e que jogam, brincam, cantam e dançam fazendo o amor como faço o poema.
Quero da vida as claras superfícies onde terminam e começam meus amores. Eu te sinto na pele, não no coração. Quero do amor as tenras superfícies onde a vida é lírica porque telúrica, onde sou épico porque ébrio e lúbrico. Quero genitais todas as nossas superfícies.
Não há limites para o prazer, meu grande amor, mas virá sempre antes, não depois da excitação. Meu grande amor, o infinito é um recomeço. Não há limites para se viver um grande amor. Mas só te amo porque me dás o gozo e não gozo mais porque eu te amo. Não há limites para o fim de um grande amor.
Nossa nudez, juntos, não se completa nunca, mesmo quando se tornam quentes e congestionadas, úmidas e latejantes todas as mucosas. A nudez a dois não acontece nunca, porque nos vestimos um com o corpo do outro, para inventar deuses na solidão do nós. Por isso a nudez, no amor, não satisfaz nunca.
Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.
O amor é tanto, não quanto. Amar é enquanto, portanto. Ponto
In: (https://cacspucsp.wordpress.com/2012/08/19/textos-do-pirata-anarquista-roberto-freire-participacao-no-programa-provocacoes/)
[Os textos foram retirados do livro Ame e dê vexame . Download em:http://pt.scribd.com/doc/68476435/Roberto-Freire-Ame-e-De-Vexame-doc-rev ].

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