terça-feira, 10 de junho de 2014

HOLOCAUSTO BRASILEIRO

O livro da jornalista mineira Daniela Arbex, ganhadora de inúmeros prêmios nacionais e internacionais, e atualmente atuando como repórter especial do jornal Tribuna de Minas, é no mínimo chocante. Trás a tona um período da historia da saúde mental brasileira desconhecido por muitos, pois, se para os que conheciam a triste realidade dos hospícios brasileiros, marcados pela tortura e exclusão, descobrir o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), ou o Colônia, como era chamado, jamais imaginaria que poderia haver algo pior do que o já  existente em termos de hospital psiquiátrico. Nesta verdadeira casa dos horrores, que abriu suas portas em 1903, durante as décadas de 1930 a 1980 contabilizou a morte de 60 mil pessoas em suas dependências. É isso mesmo, em cinquenta anos de funcionamento, 60 mil pacientes internados no Colônia morreram das mais diversas e brutais formas que se possa imaginar, chegando mesmo a haver dias em que morriam mais de quinze internos, em um único dia.

Segundo estimativa feita por pesquisadores, 70% dos atendidos não sofria de transtornos mentais. Eram geralmente indivíduos rejeitados pelo seu meio familiar ou grupo social, tais como homossexuais, negros, pobres, mendigos, alcoolistas, prostitutas, mães solteiras e desafetos de algum poderoso. Houve casos de esposas que foram trocadas por amantes e acabaram internadas lá, mocinhas que perdiam a virgindade também eram comuns, e até casos de alguém incômodo em questões de herança que foram internados por seus familiares. Não havia diagnósticos nem direitos; ao entrar no CHPB o paciente pertencia ao estado de Minas Gerais, perdia sua identidade, suas roupas, sua relação com o mundo de fora, um verdadeiro campo de concentração nazista ou comunista.

Um dos problemas do Colônia era a superlotação, que na década de 1930 contava com 5 mil pacientes num espaço destinado para duzentos, e, como quantidade é sinônimo de lucro, em vez de se reduzir o número de internos, eles aumentaram a área dos leitos retirando as camas substituindo-as por capim, desse modo o espaço ficava maior para acomodar mais e mais pacientes. Essa medida ficou conhecida como “Leito-chão” e passou a ser recomendado para outros hospitais psiquiátricos pelo poder público de Minas Gerais em 1959. A maioria dos pacientes chegavam nos chamados “Trens de doido”, termo cunhado pelo médico e escritor Guimarães Rosa, que no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” de 1962 retrata bem essas viagens que cortavam o interior do país e terminavam nos fundos do Hospital Colônia. Ao desembarcar do trem os pacientes iam para a triagem onde eram separados por sexo, idade e características físicas. Os homens tinham a cabeça raspada  e todos – homens, mulheres e crianças – eram obrigados a tomar banho coletivo gelado, sem respeito algum pelo pudor que pudessem ter. Aqueles que podiam trabalhar eram recrutados para realizar trabalhos não remunerados no hospital, nas fazendas e na cidade.

A eletroconvulsoterapia era utilizada como forma de tortura ou castigo, mas também era usada para o treinamento das auxiliares de enfermagem, quando pacientes eram escolhidos aleatoriamente e iam para a fila do eletrochoque dado pelas moças aspirantes a uma progressão funcional. Muitos pacientes morreram nesses “treinamentos”, como conta a ex-funcionária Francisca Moreira dos Reis, que após provocar uma morte e presenciar outras tantas pediu dispensa por não suportar mais ver tamanha atrocidade. Lá também se morria de pneumonia, diarreia, fome, sede e frio; a comida era racionada e imunda, os internos bebiam água direto do esgoto, e as baixas temperaturas congelavam os corpos nus. Nesse ambiente que cheirava a fezes e urina, os pacientes que adoeciam eram deixados à própria sorte, esfarrapados e cobertos de moscas esperando a hora da morte. Nos milhares de atestados de óbito pode-se ler “enterite do alienado”, termo criado para tentar explicar a quantidade absurda de mortes por diarreia aguda, e, de quebra eximir-se da culpa pelas condições que geraram a doença.

Nesse ambiente insalubre e assassino, as mortes eram frequentes. Havia dias em que chegavam a morrer 16 pessoas em média por dia; e o destino dos cadáveres eram as salas de anatomia das faculdades de medicina. Entre 1969 e 1980 foram vendidos 1853 corpos para dezessete faculdades espalhadas por todo país. Durante todo inverno, com o aumento do numero de mortes de pacientes, os lucros do hospital dobravam, pois vendiam cada corpo ao equivalente hoje a duzentos ou trezentos reais. Esse comércio incluía ainda a negociação de peças anatômicas, como fígados, corações e esqueletos.
Não se pode afirmar que havia algum tipo de tratamento psiquiátrico ou psicológico no Hospício de Barbacena; afora algumas tentativas isoladas de promover conforto aos pacientes por parte de funcionários ou religiosas mais piedosos, nada era feito para se tratar ou reabilitar os pacientes. O que eles chamavam de tratamento era a tortura do eletrochoque, a lobotomia que transformava homens, mulheres e crianças em vegetais ambulantes, a ducha escocesa (jatos d’água em alta pressão) e banhos gelados na madrugada: em suma, tortura. Como a autora afirma o Colônia “não existia para fins terapêuticos, mas políticos”.

O psiquiatra italiano Franco Basaglia, um dos pais da antipsiquiatria e do movimento de reforma psiquiátrica, esteve no Colônia na década de 1970 e afirmou com convicção: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”. A tragédia acontecida em grande escala no Hospício de Barbacena aconteceu em pequena escala em todos os lugares de nosso país, e em muitos outros, que ainda hoje confundem tortura, isolamento e exclusão com tratamento, e veem a loucura e o louco como um mal que deve antes de tudo ser silenciado e não compreendido.