sábado, 11 de julho de 2015

ALDUISIO MOREIRA DE SOUSA - 2

                     QUANDO LALÍNGUA FAZ SINTHOMA. 

(CONJECTURAS : DO ETHOS DE HERÁCLITO AO CONATUS DE ESPINOSA : O DESEJO).
              
                                                                            Alduisio M. de Souza

“Se dizemos – nós, analistasqueum inconsciente, isso está fundado sobre a experiência. A experiência que consiste no seguinte, que é desde a origem que há uma relação com “lalíngua”, que merece ser chamada justamente de maternal, pois é pela mãe que a criança – se assim posso me expressarela a recebe. Ela não aprende (lalíngua) (...) ele a apreendeu [na lalação maternal]”. J. Lacan – Scilicet 6/7 – 1977 – p. 47.
 


         Foi na década de setenta que por diversas vezes Lacan nos falou de lalíngua, inicialmente como um lapso, de colisão suponho, unindo o artigo (la) com o substantivo (língua).  Ele apanhou seu bem, como dizia, e depois de certo tempo se propôs que: “é assim que escreverei doravante”.
 
         No Seminário Encore XX, Lacan dirá queA linguagem sem dúvida é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalíngua. Mas o inconsciente é um saber-fazer com lalíngua. E o que sabemos fazer com lalíngua ultrapassa (de) muito o que podemos sacar a título de linguagem” (p. 127).

         Percebamos que Lacan estabelece uma relação entre o que chama saberes. Um saber sobre lalíngua antecedente à linguagem falada efetivamente que é pura lalação maternal, uma melodia, um poema sonoro. E outro, um saber-fazer com lalíngua, puro afeto, que performa um ato do que ainda não acedeu ao estatuto de Significante, ou seja, de Inconsciente. Ele inclusive estabelece n’A Terceira a relação em quarta proporcional nos dizendo que: o Significante está para o Inconsciente assim como a letra está para Lalíngua, deixando evidente a diferença entre ambos.

 E, que se trata de saber, e o Inconsciente sendo um saber que se inventa Lacan vai defini-lo como:  (...) para o ser falante o saber é o que se articula. Encore –  P. 125. [“  ̶ ̶  pour l’être parlant, le savoir est ce qui s’articule”].
 


O Significante, Lacan o apanha no signans-signatum estóico e em guisa de homenagem ele atribui a Saussure, invertendo seu algoritmo. O significante estará a serviço da linguagem e a escrita do Sintoma, o queconsistência ao $ujeito, sua divisão é a marca de seu tropeço originário. Hiância do recalque originário. Para a psicanálise lacaniana há $ujeito do significante, que o representa (como o representâmen pearciano) para outro significante. Quando falamos em significante implica um $ujeito, pois falamos da cópula de puras diferenças. E diferença implica falar dois (deux), que lalíngua trabalha também como deles (d’eux). É a pura diferença que está em jogo num tempo que nunca foi presente e por isso está fora da memória quando esta foi presente. É como a luta (ἔρις) entre Aion e Cronos, ou poeticamente como no mito da castração de Urano, quando Cronos decepa os testículos de seu pai e da espuma do mar onde fora atirado nasce Afrodite a bela menina gozadora seguida em cortejo por Eros e Hímeros (Amor e Desejo).

Assim foi também com o mito do Pai da Horda que existe na cultura após seu assassinato. Assim é a lógica mesma do Significante. É o ato que marca uma ausência, que se escreve como existência da inexistência. Escreve tempo e lugar incorpóreo estóico, operador do lekton que a lógica matemática de Frege subentende, nos Fundamentos da aritmética e Sentido e denotação, dentre outros textos. O Zero da ordem é puro lugar que se conta como Um, e por isso creio ser essencial retomar a leitura de A Sutura de J.A. Miller e suas referências a Leibniz e Espinosa. 

A Letra está a serviço do gozo, do puro afeto, é o triz de gozo que é escrita do da linguagem em devir.  O Sinthoma é então a escrita da encarnação do Um do gozo sob a forma de um fazer com lalíngua, podendo ser suplência a uma falha fálica do Nome-do-Pai, ou como uma alteridade radical que é a própria constituição da ordem numérica.

O analista investido transferencialmente ocupa tal posição, o analisando o escreve como Um suposto saber.  Lacan vai mesmo dizer que ele se equivoca com a ortografia. É clinicamente o se mostrar da existência da inexistência contada como Um. Como [erôm] puro desejante, enigmático e não um erômenos. Aqui temos a confluência de Platão do Banquete, desejo do desejo de Alcebíades por Sócrates, referido então ao desejo do Analista como puro desejar. Da Eternidade em Espinosa, que é tempo puro, sem começo nem fim e enfim do tempo puro perdido de Proust, que não acede à memória quando teria sido seu tempo presente. É aquele que ou sofre a ação que se escreve como presente, que se marca. Daí Lacan jogar com poeta poema: “Eu não sou poeta dirá ele em 1976 –, mas um poema”. Um poema: o Um que se conta como poema é escrito. É na lógica dos Acontecimentos, um averbar na posição de um outrem, o que é o on (4ª. Pessoa – a gente) como puro lugar no entre significantes, enigma, cifra a ser desvelada. Este entre na língua francesa (antre) em sua fonação se equivoca com outro (autre). O $ujeito advém do jogo da diferença, e é por ela que no campo de lalíngua teremos a gênese do Significante e constituição do campo do Outro (Autre).

O Um encarnado na lalíngua é algo que fica indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo pensamento. Há Um? Um-entre-outros, esse um (S1), que soa como enxame, esse um, S1 de cada significante é deles, d’eux, dois que falo e escreverei S2 (S deux)”. S1 (S1 (S1 → S2) ) ). J. Lacan – Encore p. 130. Lacan aqui chama a atenção para que saibamos escutar a melodia para lermos significações. Temos a razão lógica e suficiente para que o conceito de par ordenado seja pura conseqüência retroversa. O par, dois (deux), deles (d’eux) é um implícito da própria definição de Significante na álgebra lacaniana pela presença de lalíngua.

É, pois assim que Lacan vai abordar a relação entre significantes em sua origem como algo forjado para dar conta, dar suporte a lalíngua. É este o ETHOS como lugar ao qual Heráclito definia como morada, habitação, caráter, modo específico que é a  característica extraordinária do Ser. É aberto à presença de deus/saber (dieu, deus, dieure de deus/dizer/dire).

A linguagem co-habita com lalíngua, o Significante com a Letra. Esta co-habitação funda o ethos humano: Ήθος άντρώπωι δαίμων. Ethos anthropos daimon. (Frag. 119 DK, de Heráclito). “A índole do homem é excepcional [seu gênio/daimon]”. Este fragmento fundador (primeiro) encontra várias leituras e o que buscamos aqui seguir é a recomendação de Heidegger: “Deve-se considerar o fragmento 119 como sendo um dos mais essenciais que nos foram legados. Ele talvez se deixe discutir no final de uma interpretação conclusiva de Heráclito” (Heidegger, Heráclito, p. 359).  É com esse propósito que Heidegger faz uma composição de leitura com outros fragmentos em particular os 16 e 78, que dizem respectivamente o seguinte: “Talvez alguém se esconda da luz sensível, mas, da inteligente é impossível, (ou segundo diz Heráclito) do que nunca se põe, como pode alguém se ocultar? (Frag. 16 DK)”.

A morada (índole, ethos que se mostra), aquela do homem (em meio a totalidade dos entes) não possui (γνώμας) medidas (discernimento) mas a dos deuses possui”.  (Frag. 78 DK).

A tradução de Heidegger dirá então, tal como deduzimos, de uma morada aberta à presença de deuses (no sentido grego de aberta aos saberes e não de ), tal como nos é contado na Carta sobre o humanismo. (Pré-socráticos – PensadoresAbril). Para a tradução de Heráclito trabalhamos também Donaldo Schüler e Damião Berge.

Avancemos atentos, pois quero que meu breve trabalho aborde a questão de Lalíngua e Sinthoma numa aposta intercalada entre o Ethos de Heráclito e o Conatus de Espinosa, para sacar o Desejo em Freud e Lacan. O ethos para que o $ujeito advenha o lemos na sentença freudiana que Lacan eleva à dignidade pré-socrática: “Wo Es war soll Ich werdemque Lacan traduz: “ onde iss’era eu devo advir”, e reescreve assim: “wo Es war, da durch das Eins werde ichonde era isso (a Coisa), ali, através do um, advirei eu”, sendo esse um o traço unário, traço do desaparecimento da Coisa, ela é “objeto vazio e sem conceito” (nihil negativum de Kant). Temos a confluência do nada do sujeito pelo traço unário e que então se encontra com o nada do objeto a. É aqui que topamos com Frege na relação que constitui a fundação dos números inteiros a série e a ordem onde o lugar do Zero escreve o Um.

Supomos que Lacan ao se referir ao pré-socratismo da sentença freudiana topa com Heráclito e seu polemos/guerra (πὁλεμος) que traz a luta/discórdia (ἔρις), associada à justiça (δίκην) que constitui o Um. Como no fragmento 48 e 50 DK de Heráclito, agora na tradução de Damião Berge: “O nome do arco [bíos] é vida, sua obra, porem, morte”, e “Se ouvirem, não a mim, mas ao logos, provarão ser sábios se admitirem que tudo é um”. Aliás, foi como corruptela do fragmento 50 DK que Sócrates no Banquete, falando de maneira oracular seduz Alcebíades ao refutar Agatão, se pondo no lugar da verdade: “É à verdade, querido Agatão, que tu não podes contradizer, (a verdade que fala pela boca de Sócrates), pois à Sócrates não é nada difícil”. Platão – Pensadores.
 
Mas... sucintamente o que é o Conatus de Espinosa?

Lacan, n’ A Terceira vai retirar o corpo de sua vertente cartesiana do ser como existência e o ordenar no ser como gozar. Do “Eu penso logo sou” (Je pense donc je suis) a redução da certeza cartesiana de não poder duvidar que duvida, ele vai pelo viés de lalíngua, escrevê-la comoJe pense donc je souis”, ou seja, “Penso logozou”, ou ainda, “Penso e pelo ato de pensar gozo”. Aqui, o Deus Sive Natura de Espinosa se torna Deus Sive Gozo, de Lacan.

Temos a matriz do gozo, lalíngua, e teríamos de conceber que a lalação maternal está na base da linguagem.  É com a lalação maternal que a criança (o bebê), a cria joga, goza ao receber e apreender da Mãe. Ele recebe e não aprende, pois não há aprendizagem de lalíngua, eu diria forçando, o que há na lalíngua como lalíngua, tal o lapso de Lacan é um acontecer onde o dizer atropela o dito em sua intencionalidade. É um A-preender, como ele escreverá.

É  lalação que se impõe por ser como aluvião do lallare latino, do λάλος grego,  do lapso lacaniano (lalangue), do gênio (δαιμον/daimon) de Sócrates e do Um fragmentado em seu fluir/devir de Heráclito, o “obscuro” e “tenebroso”, que funda um-a-se-pensar originário, na leitura heideggeriana.
 


Eis o que diz Lacan: “É na lalíngua com todos os equívocos que resultam do que ela suporta de rimas e aliterações (...) onde se enraíza toda uma série de fenômenos que Freud catalogou que vão do sonho, cujo sentido deve ser interpretado, daí a toda sorte de enunciados que em geral se apresentam como equívocos, isto é, o que são chamados tropeços da vida cotidiana, os lapsos. É, sempre de uma maneira lingüística que estes fenômenos se interpretam, e isto mostra para Freud que certo núcleo, núcleo de impressões linguageiras está na base de tudo que se pratica humanamente (...) a partir de um primeiro jogo e não é por nada que podemos dizer língua maternal, ou seja, os cuidados que tem a mãe para ensinar sua cria a falar, e este papel terá uma   função decisiva e sempre definitiva (...)”. – STYLUS – Revista de Psicanálise 19, outubro 2009 – AFCL/EPFCL – Brasil. Texto Francês – (Tradução própria). 
 


A matriz do gozolalínguapenso ser compatível com o Conatus espinosano. A substância, que existe em si e por si, é eterna, pois nela coincide o existir o ser e o agir. Esta substância é Deus/Natureza para Espinosa, e Gozo (Jouissance) para Lacan.

No Escólio da p. 177 eis o que diz Espinosa: “O Conatus, à medida que está referido apenas à mente, chama-se vontade; mas à medida que está referido à mente e o corpo chama-se apetite, o qual, portanto nada mais é que a própria essência do homem, de cuja natureza necessariamente se seguem àquelas coisas que servem para sua conservação, e as quais o homem está, assim determinado a realizar. Além disso, entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite. (...) o desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem. Torna-se assim evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la que a julgamos boa”. SpinosaÉTICA Autêntica, 2008.
 


Podemos deduzir então que o ethos do homem (antrópos), o Ethos heraclítico é o puro afeto, lalíngua, diferenciando-se em seguida pelos gêneros do conhecimento espinosano, particularmente o terceiro gênero, que engloba a consciência, a razão e a invenção de novos modos de vida, síntese que a permanência vital exige, entre o interior e o exterior da relação de corpos. entramos no âmbito das faculdades, da razão que é logos, ou seja, linguagem. O conatus oscila no seu fluir eficiente entre ser causa adequada e inadequada e funda uma ética de afetações. Aumento ou diminuição em nossa capacidade afetiva, ou seja, de afetar e ser afetado por outros corpos. “O esforço – conatus – para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude” diz Espinosa. 

Espinosa fala em causalidade e postula causa adequada e inadequada. Se corpo e alma são a mesma coisa diferenciando-se ora sob o atributo do pensamento ora sob a extensão, o que se modifica é a capacidade de afetação, de agir e sofrer ação. Daí, diz-se que à medida das idéias adequadas (aumento da capacidade de agir) ou inadequadas, ele padece pelas idéias inadequadas. Como diz Marilena Chauí, “Ser causa inadequada é ser passivo e passional. Ser causa adequada é ser ativo e livre”. Há aqui o que poderíamos chamar de flutuação do conatus. Flutuação do ethos tal como o fragmento 78 de Heráclito, situando o discernimento, tal como foi proposto por Donaldo Schüler: “O caráter humano não tem discernimento, mas o divino tem”. As fontes de Donaldo Schüler e Damião Berge (B) não são as mesmas de Heidegger, (DK).

  Quando dois afetos contrários agem, compreenderíamos a série que se organiza entre a alegria e a tristeza, o amor e o ódio, sob a ótica da busca da felicidade que se expressaria sob o bem e evitaria a superstição, que é o fundamento da servidão. O percurso de vida e da obra de Espinosa é exemplar. Seu início se dá na redefinição do bem, ou do que era organizado como bens: honra, riquezas e prazeres. Estes seriam para Espinosa distração da mente e poderíamos quase que literalmente ler Freud da Psicologia das massas, a necessidade da Igreja, do Estado e da Religião. Garantia das superstições a alienações variadas tal qual vivemos hoje na nossa pós-modernidade e o advento do politicamente correto, socialmente bem aceito. O que não é tão estranho à nossa disciplina no que chamei de risco de uma leitura supersticiosa de Lacan, quando um dizer se baseia na conformidade de um indivíduo ou de uma instituição. vemos como a necessária ousadia do pensar arrisca-se cair em uma servidão voluntária traída pela necessidade referencial. É o risco que corremos, por isso devemos estar atentos.
                                                  Atenciosamente Alduisio
                                                     


N.B. A ser inserido na topologia do caleidoscópio referido em meu trabalho anterior.

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