(CONJECTURAS
: DO ETHOS DE HERÁCLITO AO CONATUS DE ESPINOSA : O DESEJO ).
Alduisio M. de Souza
“Se dizemos – nós , analistas – que
há um inconsciente ,
isso está fundado
sobre a experiência .
A experiência que
consiste no seguinte , que é desde a origem que há
uma relação com
“lalíngua”, que merece ser
chamada justamente
de maternal, pois é pela
mãe que
a criança – se assim
posso me expressar
– ela a recebe. Ela
não aprende (lalíngua) (...) ele a apreendeu [na lalação maternal]”. J. Lacan –
Scilicet 6/7 – 1977 – p. 47.
Foi na década de setenta que
por diversas vezes
Lacan nos falou de lalíngua, inicialmente como
um lapso ,
de colisão suponho, unindo o artigo (la) com
o substantivo (língua ). Ele
apanhou seu bem ,
como dizia, e depois
de certo tempo
se propôs que : “é assim que
escreverei doravante ”.
No Seminário Encore XX, Lacan dirá que “A linguagem
sem dúvida
é feita de lalíngua. É uma elucubração
de saber sobre
lalíngua. Mas o inconsciente
é um saber-fazer com
lalíngua. E o que sabemos fazer
com lalíngua ultrapassa (de) muito o que
podemos sacar a título
de linguagem ” (p. 127).
Percebamos
que Lacan estabelece uma relação entre o
que chama
saberes . Um
saber sobre
lalíngua antecedente à linguagem falada
efetivamente já
que é pura
lalação maternal, uma melodia , um poema sonoro . E outro , um saber-fazer com
lalíngua, puro afeto ,
que performa um
ato do que
ainda não
acedeu ao estatuto de Significante , ou
seja, de Inconsciente . Ele
inclusive estabelece n’A Terceira
a relação em
quarta proporcional nos
dizendo que : o Significante
está para o Inconsciente assim como a letra está para Lalíngua,
deixando evidente a diferença
entre ambos .
E, já que se trata de saber , e o Inconsciente sendo um
saber que se inventa Lacan vai defini-lo como : (...) para
o ser falante
o saber é o que
se articula. Encore – P. 125.
[“ ̶ ̶
pour l’être parlant, le savoir est ce qui s’articule”].
O Significante ,
Lacan o apanha no signans-signatum estóico e em guisa de homenagem ele atribui
a Saussure, invertendo seu algoritmo . O significante
estará a serviço da linguagem
e a escrita do Sintoma ,
o que dá consistência
ao $ujeito, sua divisão
é a marca de seu
tropeço originário .
Hiância do recalque originário . Para a psicanálise
lacaniana só há $ujeito do significante , que
o representa (como o representâmen
pearciano) para outro
significante . Quando
falamos em significante
já implica um
$ujeito, pois falamos da cópula
de puras diferenças . E diferença implica falar dois (deux), que
lalíngua trabalha também
como deles (d’eux). É a pura diferença que está em jogo num tempo que nunca foi presente e por isso está fora
da memória quando
esta foi presente . É como
a luta (ἔρις) entre
Aion e Cronos, ou poeticamente como no mito da
castração de Urano ,
quando Cronos decepa os testículos de seu
pai e da espuma
do mar onde
fora atirado
nasce Afrodite a bela menina gozadora seguida
em cortejo
por Eros e Hímeros (Amor e Desejo ).
A Letra
está a serviço do gozo ,
do puro afeto ,
é o triz de gozo
que é escrita
do nó da linguagem
em devir . O Sinthoma é então
a escrita da encarnação
do Um do gozo
sob a forma
de um fazer
com lalíngua, podendo ser
suplência a uma falha fálica do Nome-do-Pai,
ou como
uma alteridade radical
que é a própria
constituição da ordem
numérica.
O analista
investido transferencialmente ocupa tal posição , o analisando o escreve como
Um suposto
saber .
Lacan vai mesmo dizer
que ele
se equivoca com a ortografia .
É clinicamente o se mostrar da existência da inexistência
contada como Um .
Como [erôm] puro
desejante, enigmático e não um erômenos. Aqui
temos a confluência de Platão do Banquete , desejo
do desejo de Alcebíades por Sócrates, referido então
ao desejo do Analista
como puro
desejar . Da Eternidade
em Espinosa, que
é tempo puro ,
sem começo
nem fim
e enfim do tempo
puro perdido de Proust, que não acede à
memória quando
teria sido seu tempo
presente . É aquele
que lê
ou sofre a ação
que se escreve como
presente , que
se marca . Daí Lacan jogar com poeta poema : “Eu não
sou poeta – dirá ele
em 1976 –, mas
um poema ”.
Um poema :
o Um que
se conta como
poema é escrito .
É na lógica dos Acontecimentos ,
um averbar na
posição de um
outrem , o que
é o on (4ª. Pessoa – a gente )
como puro
lugar no entre
significantes , enigma ,
cifra a ser
desvelada. Este entre
na língua francesa (antre) em sua fonação se equivoca com
outro (autre). O $ujeito advém do
jogo da diferença ,
e é por ela
que no campo
de lalíngua teremos a gênese do Significante e constituição
do campo do Outro
(Autre).
“O Um
encarnado na lalíngua é algo que fica indeciso entre
o fonema , a palavra ,
a frase , mesmo
todo pensamento .
Há Um ? Um-entre-outros, esse um (S1), que soa como enxame , esse um , S1 de cada significante é deles, d’eux, dois
que falo
e escreverei S2 (S deux)”. S1 (S1 (S1 → S2) ) ). J. Lacan – Encore
p. 130. Lacan aqui chama
a atenção para
que saibamos escutar
a melodia para
lermos significações. Temos aí a razão lógica e suficiente para que o conceito
de par ordenado
seja pura conseqüência
retroversa. O par , dois
(deux), deles (d’eux) é um implícito da própria
definição de Significante
na álgebra lacaniana pela presença de lalíngua.
É, pois assim que Lacan
vai abordar a relação
entre significantes
em sua
origem como
algo forjado para
dar conta , dar
suporte a lalíngua. É este o ETHOS como
lugar ao qual
Heráclito definia como morada , habitação ,
caráter , modo
específico que
é a característica
extraordinária do Ser .
É aberto à presença de deus /saber (dieu,
deus , dieure de deus /dizer /dire).
A linguagem
co-habita com lalíngua, o Significante com
a Letra . Esta co-habitação funda o ethos humano :
Ήθος άντρώπωι δαίμων. Ethos anthropos daimon. (Frag. 119 DK, de Heráclito).
“A índole do homem
é excepcional [seu
gênio /daimon]”. Este
fragmento fundador
(primeiro ) encontra
várias leituras e o que
buscamos aqui seguir
é a recomendação de Heidegger: “Deve-se
considerar o fragmento
119 como sendo um
dos mais essenciais
que nos
foram legados . Ele
talvez só
se deixe discutir no final
de uma interpretação conclusiva de
Heráclito” (Heidegger, Heráclito, p. 359). É com esse propósito que Heidegger faz uma composição
de leitura com
outros fragmentos
em particular
os 16 e 78, que dizem respectivamente o seguinte :
“Talvez alguém
se esconda da luz sensível ,
mas , da inteligente
é impossível , (ou
segundo diz Heráclito) do que nunca se
põe, como pode alguém
se ocultar ? (Frag. 16 DK)”.
“A morada
(índole , ethos que
se mostra ), aquela do homem (em meio a totalidade dos entes ) não
possui (γνώμας) medidas (discernimento ) mas
a dos deuses possui”. (Frag. 78 DK).
A tradução
de Heidegger dirá então , tal como
deduzimos, de uma morada aberta à presença de deuses (no sentido
grego de aberta
aos saberes e não
de fé ), tal
como nos
é contado na Carta sobre o humanismo .
(Pré-socráticos – Pensadores – Abril ). Para a tradução de Heráclito trabalhamos também
Donaldo Schüler e Damião Berge.
Avancemos atentos ,
pois quero que
meu breve
trabalho aborde a questão
de Lalíngua e Sinthoma numa aposta
intercalada entre o Ethos de
Heráclito e o Conatus de Espinosa, para sacar o Desejo
em Freud e Lacan. O ethos para que o $ujeito
advenha o lemos na sentença freudiana que
Lacan eleva à dignidade pré-socrática: “Wo
Es war soll Ich werdem” que Lacan
traduz: “Lá onde iss’era eu devo advir ”, e
reescreve assim : “wo Es war, da durch
das Eins werde ich – onde era isso (a Coisa ), ali , através do um ,
advirei eu ”, sendo esse um o traço unário, traço
do desaparecimento da Coisa ,
ela é “objeto
vazio e sem
conceito ” (nihil negativum de Kant).
Temos a confluência do nada do sujeito pelo traço
unário e que então
se encontra com
o nada do objeto
a. É aqui que
topamos com Frege
na relação que
constitui a fundação dos números inteiros
a série e a ordem
onde o lugar
do Zero escreve o Um .
Supomos que
Lacan ao se referir ao pré-socratismo da sentença freudiana
topa com
Heráclito e seu polemos/guerra (πὁλεμος) que
traz a luta /discórdia
(ἔρις), associada à justiça (δίκην) que
constitui o Um . Como
no fragmento 48 e 50 DK de Heráclito, agora na tradução
de Damião Berge: “O nome do arco [bíos] é vida ,
sua obra ,
porem, morte ”, e “Se ouvirem, não a mim , mas ao logos ,
provarão ser sábios
se admitirem que tudo
é um ”. Aliás ,
foi como corruptela
do fragmento 50 DK que
Sócrates no Banquete , falando de maneira oracular seduz
Alcebíades ao refutar Agatão, se pondo no lugar da verdade : “É à verdade , querido Agatão, que tu não podes contradizer , (a
verdade que fala pela boca de Sócrates), pois
à Sócrates não é nada
difícil ”. Platão – Pensadores .
Lacan, n’ A Terceira vai retirar o corpo de sua vertente cartesiana do ser como existência
e o ordenar no ser como gozar . Do “Eu penso
logo sou” (Je pense donc je suis) a
redução da certeza cartesiana de não poder duvidar
que duvida, ele
vai pelo viés
de lalíngua, escrevê-la como “Je
pense donc je souis”, ou seja, “Penso logozou”, ou
ainda , “Penso
e pelo ato de
pensar gozo ”.
Aqui , o Deus
Sive Natura de Espinosa se torna Deus
Sive Gozo , de Lacan.
Temos aí
a matriz do gozo ,
lalíngua, e teríamos de conceber que a lalação maternal está na base
da linguagem . É com
a lalação maternal que a criança (o bebê ), a cria joga , goza ao receber e apreender da Mãe . Ele recebe e não
aprende, pois não
há aprendizagem de lalíngua, eu
diria forçando, o que há na lalíngua como lalíngua, tal
o lapso de Lacan é um
acontecer onde
o dizer atropela
o dito em
sua intencionalidade. É um A-preender, como
ele escreverá.
É lalação que
se impõe por ser
como aluvião
do lallare latino , do λάλος grego , do lapso lacaniano (lalangue), do gênio (δαιμον/daimon) de Sócrates e do Um fragmentado em seu
fluir /devir
de Heráclito, o “obscuro ” e “tenebroso ”, que funda um-a-se-pensar originário , na leitura
heideggeriana.
A matriz
do gozo – lalíngua – penso ser compatível com
o Conatus espinosano. A substância , que existe em si e por si , é eterna , pois nela coincide o existir o ser e o agir . Esta substância
é Deus /Natureza
para Espinosa, e Gozo
(Jouissance) para Lacan.
No Escólio da p. 177 eis o que diz
Espinosa: “O Conatus, à medida que está referido apenas
à mente , chama-se vontade ;
mas à medida
que está referido à mente
e o corpo chama-se apetite ,
o qual , portanto
nada mais
é que a própria
essência do homem ,
de cuja natureza
necessariamente se seguem àquelas coisas
que servem para
sua conservação ,
e as quais o homem
está, assim determinado
a realizar . Além
disso, entre apetite
e desejo não
há nenhuma diferença , excetuando-se que , comumente, refere-se o desejo
aos homens à medida
que estão conscientes
de seu apetite .
(...) o desejo é o apetite
juntamente com
a consciência que
dele se tem. Torna-se assim evidente , por tudo isso , que não é por julgarmos uma coisa boa
que nos
esforçamos por ela ,
que a queremos, que
a apetecemos, que a desejamos, mas ao contrário ,
é por nos
esforçarmos por ela ,
por querê-la, por
apetecê-la, por desejá-la que a julgamos boa”. Spinosa – ÉTICA – Autêntica ,
2008.
Podemos deduzir
então que
o ethos do homem (antrópos), o Ethos
heraclítico é o puro afeto , lalíngua, diferenciando-se em seguida pelos gêneros
do conhecimento espinosano, particularmente o terceiro
gênero , que
engloba a consciência , a razão e a invenção
de novos modos
de vida , síntese
que a permanência
vital exige, entre
o interior e o exterior
da relação de corpos .
Aí já
entramos no âmbito das faculdades , da razão
que é logos ,
ou seja, linguagem .
O conatus oscila no seu fluir eficiente entre ser causa
adequada e inadequada e funda uma ética de afetações .
Aumento ou diminuição em nossa capacidade
afetiva , ou
seja, de afetar e ser afetado por outros corpos .
“O esforço – conatus – para
se conservar é o primeiro
e único fundamento
da virtude ” diz Espinosa.
Espinosa fala em
causalidade e postula causa adequada e inadequada.
Se corpo e alma
são a mesma
coisa diferenciando-se ora
sob o atributo
do pensamento ora
sob a extensão ,
o que se modifica é a capacidade de afetação ,
de agir e sofrer ação . Daí, diz-se que
à medida das idéias
adequadas (aumento da capacidade
de agir ) ou
inadequadas, ele padece pelas idéias inadequadas. Como
diz Marilena Chauí, “Ser causa
inadequada é ser passivo
e passional . Ser
causa adequada é ser ativo e livre ”.
Há aqui o que
poderíamos chamar de flutuação
do conatus. Flutuação do ethos
tal como
o fragmento 78 de Heráclito, situando o discernimento , tal
como foi proposto por
Donaldo Schüler: “O caráter humano não tem discernimento , mas
o divino tem”. As fontes
de Donaldo Schüler e Damião Berge (B) não
são as mesmas de Heidegger, (DK).
N.B. A ser inserido na topologia
do caleidoscópio referido em meu trabalho anterior .
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