quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Da Hipnose ao Método Catártico - Uma Introdução à Psicanálise - Parte 2.

Durante todo o tempo em que Freud cursou medicina, e mesmo após a conclusão do curso, a tendência teórica dominante na Medicina alemã era a da "anatomia patológica". De acordo com essa concepção, toda e qualquer patologia deveria apresentar uma lesão anatômica para possuir o status de doença, e, para aquelas enfermidades que contrariavam o postulado básico – ausência de lesão – havia a explicação temporal: se não há lesão anatômica é porque o tempo de duração da doença foi insuficiente para que tal lesão aparecesse.

Na psiquiatria, a corrente patológico-anatômica tinha como principais representantes na época de Freud os célebres Wilhelm Griesinger, professor de psiquiatria da Universidade de Berlim e Theodor Meynert, professor de neuropsiquiatria de Freud na Universidade de Viena e principal opositor das concepções psicológicas explicativas do fenômeno da histeria. Tanto Griesinger quanto Meynert eram categóricos ao afirmar a existência de lesões anatômicas nas doenças mentais, e partilhavam da crença de que a Psiquiatria seria a disciplina médica que se ocupa das doenças do córtex cerebral e de que toda investigação psicopatológica deveria ser feita a partir de fatos anatômicos.
Foi sob essa influência que Freud deu seus primeiros passos na pesquisa médica, tendo como orientador Meynert com quem trabalhou por dois anos (1883-1885) e posteriormente Ernst Brucke, ele produziu uma série de trabalhos cuja ênfase eram estudos anatômicos na área de Neuroanatomia; de acordo com Levin (1980): "Esses trabalhos anatômicos e clínicos foram a base para a nomeação de Freud, em 1885, como Privatdozent".

No entanto, a influência decisiva que conduziria Freud à Psicanálise, foi seu encontro com o eminente médico francês Jean-Martin Charcot, que ao lado de Emil Kraepelin representou a maior oposição que a tendência anátomo-patológica poderia sofrer. Charcot afirmava que o "trabalho da Anatomia estava acabado e ... pode-se afirmar que a teoria das doenças orgânicas do sistema nervoso chegou ao fim", foi com ele que Freud estudou durante aproximadamente seis meses, e, conheceu uma nova explicação para o enigma da histeria bem mais consistente que àquela apresentada pela tradição da anatomia patológica. Em suas aulas na Salpêtrière Charcot defendia a tese de que a conversão histérica estava baseada em modificações fisiológicas do SN: "existia um choque emocional que deixava o indivíduo em um estado hipnóide e a partir daí vinha a lesão funcional ou dinâmica. O trauma induz um estado hipnótico em pessoas que sofrem de disposição histérica e que nesse estado (....) o trauma transmite sugestões ao paciente".

Além de afirmações chocantes, Charcot também utilizava métodos de investigação nada ortodoxos. Na tentativa de provar suas teorias, ele usava a hipnose para criar sintomas histéricos, dirimindo dessa forma, quaisquer dúvidas acerca do papel da sugestão e do estado hipnóide na gênese da sintomatologia histérica. Apesar de criar e de fazer desaparecer temporariamente os sintomas histéricos, Charcot não conseguiu curar nenhum caso de histeria, porém, a impressão que esse grande médico causou em Freud foi suficiente para afastá-lo da anatomia patológica, conforme ele mesmo escreveu em uma carta para sua noiva Martha em 24 de novembro de 1885: "Charcot, que é um dos maiores médicos ... está simplesmente destroçando todos os meus propósitos e opiniões ... Quando me afastar dele, não terei mais desejo algum de continuar a trabalhar em minhas coisas ridículas".

Em 1880, Josef Breuer iniciou o tratamento de uma jovem histérica, filha de um de seus pacientes, que ficou conhecida na literatura psicanalítica como Anna O. Anna sofria de paralisias histéricas, distúrbios visuais, sintomas afásicos, sonambulismo, entre outros sintomas ocasionais de curta duração, tais como hidrofobia e agorafobia. O tratamento foi realizado por Breuer utilizando-se do sonambulismo vespertino da paciente, durante o qual eram feitas sugestões e gradativamente os sintomas iam desaparecendo. A forte transferência erótica de Anna O. levou seu terapeuta a afastar-se definitivamente dela e da histeria; no entanto, estava aberto o caminho para a decifração do inconsciente.

Depois de escutar o relato desse interessante caso clínico, Freud converte-se em discípulo de Breuer, que lhe manda pacientes e ainda lhe paga honorários para que aprofunde a pesquisa sobre o fenômeno da histeria. O fruto dessa colaboração surgiu em l895 sob a forma de um livro: os "Estudos sobre histeria", e com ele, inaugurava-se as bases da teoria psicanalítica, chamada à época de método catártico. Nesse livro, além das considerações teóricas de ambos sobre o mecanismo psicológico da histeria, encontramos também a descrição dos aspectos técnicos do método catártico ilustrados por inúmeros casos clínicos que passaremos a examinar.
...continua.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

SIGMUND FREUD - Uma Introdução à Psicanálise. Parte 1.

Torna-se tarefa quase impossível falar da teoria psicanalítica sem fazer referência à vida de seu criador. Sigismund Schlomo Freud nasceu em Freiberg na Morávia, no dia 6 de maio de 1856, primeiro filho do segundo casamento de Jacob Freud, um comerciante de lãs, com Amália Nathansohn. Ainda na adolescência e por motivos desconhecidos até pelos biógrafos, Freud passa a assinar Sigmund, sem o "is", e a não utilizar o segundo nome, Schlomo, que era uma homenagem ao avô.
Os Freud eram uma típica família judia, que movida por dificuldades financeiras teve que emigrar para centros mais promissores, primeiro para Leipzig e depois para Viena, onde fixaram-se de forma definitiva. A infância de Freud foi marcada pela luta de seu pai para manter uma família extensa (Sigmund, Anna, Rosa, Marie, Adolfine, Pauline e Alexander), e pelo favoritismo declarado de seus pais a esse jovem promissor.

No outono de 1873 Freud ingressa no curso de medicina da Universidade de Viena, e sente na pele o anti-semitismo reinante naquele período. O curso de medicina possuía duração de cinco anos, mas só oito anos depois, em 1881 ele sai da Universidade com seu diploma de médico. Dos anos que passou na Universidade, seis foram dedicados ao trabalho de pesquisa em neurofisiologia no laboratório de Ernst Brucke, que teve um papel importante na criação da psicanálise ao apresentar o jovem Sigmund ao já famoso clínico Josef Breuer.

No ano de 1879, Freud se licencia da Universidade para se dedicar ao serviço militar obrigatório, onde fica até o ano seguinte. Por achar a vida na caserna um tanto tediosa, ele passa seu tempo livre traduzindo para o alemão quatro ensaios das obras reunidas do famoso psicólogo John Stuart Mill. Em abril de 1882, Freud conhece Martha Bernays e rapidamente se apaixona e ficam noivos dois meses depois do primeiro encontro; agora ele tinha um forte motivo para se preocupar com sua situação financeira, pois pretendia casar-se o mais rápido possível.

Apesar de já ter concluído o curso de medicina, Freud permanece trabalhando no laboratório de Brucke; mas, no verão desse mesmo ano, aconselhado por seu mestre, deixa o laboratório e assume um posto não muito importante no Hospital Geral de Viena, onde ficou por três anos trabalhando em várias especialidades médicas. Em maio de 1883, ele foi promovido a "Sekundararzt" e passa a trabalhar na clínica psiquiátrica dirigida por Theodor Meynert, com quem anos mais tarde viria a ter problemas por causa da histeria e da hipnose.

No início de 1884, Freud dedicou-se ao estudo das propriedades anestésicas da cocaína, e, em junho desse mesmo ano, concluiu um artigo técnico intitulado "Sobre a Coca". Entretanto suas pesquisas lhe trouxeram mais aborrecimentos que dinheiro e sucesso - que era o que ele esperava conseguir. A glória pela descoberta do uso da coca como anestésico local em pequenas ciriurgias coube a Carl Koller, que aproveitando-se da ausência de Freud - que viajara para encontrar-se com sua noiva - apresentou um trabalho sobre coca no congresso oftalmológico de Heidelberg que estava totalmente baseado nas pesquisas realizadas por Freud.

Em meados de outubro de 1885, Freud chega a Paris para estudar com o célebre médico Jean-Martin Charcot, que entre outras coisas, teve o mérito de demonstrar que a histeria não era fruto de lesões orgânicas - tal como era postulada por Meynert e por toda tradição médica alemã. Charcot foi ainda mais longe ao afirmar que a histeria não era uma doença exclusiva das mulheres (histeron= útero); e mais ousado, quando resgata a hipnose das mãos dos mágicos e curandeiros "para aplicá-la de modo conseqüente no tratamento de doenças mentais" (Peter Gay, p.61). No entanto, o interesse de Charcot pela histeria não foi suficiente para que ele se preocupasse em procurar um modo de tratar o distúrbio; a hipnose, tal como utilizada por ele, não representava propriamente uma modalidade de tratamento. Segundo Maud Manoni, Charcot estava tão absorvido pela observação científica que não deu importância à vida infantil dos pacientes, nem a relação que se estabelecia entre estes e o médico, impedindo assim quaisquer possibilidades de se chegar à cura da histeria. Malgrado toda admiração que Freud sentia por Charcot, ele não estava muito satisfeito com a explicação dada pelo médico francês sobre a natureza da hipnose, pois, para Charcot o estado hipnótico só poderia ser provocado em histéricos. Adotando postura contrária à tese defendida por Charcot, a Escola de Nancy - representada por Liébault e Bernheim - afirmava que a hipnose era apenas uma questão de sugestão, Freud achava esse ponto de vista mais coerente.
... continua.