segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Jorge Luis Borges

Uma oração

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.
Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.


O poema acima foi extraído do livro "Elogio da Sombra", Editora Globo - Porto Alegre, 2001, pág. 75 (tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques; revisão da tradução: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz).

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Alfred Benjamin

"Para mim, a entrevista é um diálogo entre duas pessoas, diálogo que é sério e tem um propósito. A questão fundamental para o entrevistador deve ser sempre a seguinte: qual será o melhor modo de ajudar a pessoa?"

"Minha experiência me ensina que a maior parte dos entrevistadores principiantes considera difícil suportar o silêncio. Eles parecem julgar que, se há um silêncio, a culpa é deles, e o lapso deve ser corrigido imediatamente e a qualquer preço".
Recomendo sempre esse livro para todas as pessoas que vão trabalhar com gente. Não é um manual de receitas ou de técnicas, é antes, um relato da experiência do autor em seus contatos com pessoas que buscavam ajuda diante do sofrimento.

sábado, 15 de novembro de 2008

Fé cristã e a responsabilidade com o uso honesto dos dízimos.

Neste artigo (dividido em três partes), Antônio Fernandes Dantas expõe questões relevantes acerca da fé cristã. Encontramos uma descrição detalhada sobre os diversos grupos de igrejas cristãs (Católica Romana, Católica Ortodoxa, Protestantes Tradicionais, Protestantes Pentecostais, Neopentecostalismo etc) suas principais características e doutrinas. Na terceira parte, o autor ensina como identificar as chamadas "igrejas arrecadadoras", aquelas que visam tão somente o lucro esquecendo do principal: a pregação do Evangelho. Ele também descreve algumas práticas que podem servir de pista para a identificação de igrejas descomprometidas com a Palavra de Deus, tais como as "famosas campanhas", cujo principal objetivo é arrecadar fundos para deleite próprio, usando o dinheiro dos dízimos e ofertas para finalidades outras, que não visam a expansão do Reino de Deus. Vale à pena conferir.
Para ler o artigo clique no link abaixo e digite o título no buscador do site:
http://recantodasletras.uol.com.br/publicacoes.php

domingo, 9 de novembro de 2008

O corpo: sedução e histeria.

Este artigo, do psicólogo Antonio Carlos Lima, analisa sucintamente o papel da sedução enquanto fenômeno chave na sintomatologia da histeria e suas implicações na construção e desenvolvimento do corpo, erotizado pela linguagem e lugar do desejo.
CLIQUE ABAIXO PARA LER O ARTIGO:
http://www.pesquisaeducacional.pro.br/pub1/Antonio_Carlos.htm

domingo, 28 de setembro de 2008

William Shakespeare


SONETO LXXXVIII


Quando me tratas mau e, desprezado,

Sinto que o meu valor vês com desdém,

Lutando contra mim, fico a teu lado

E, inda perjuro, provo que és um bem.

Conhecendo melhor meus próprios erros,

A te apoiar te ponho a par da história

De ocultas faltas, onde estou enfermo;

Então, ao me perder, tens toda a glória.

Mas lucro também tiro desse ofício:

Curvando sobre ti amor tamanho,

Mal que me faço me traz benefício,

Pois o que ganhas duas vezes ganho.

Assim é o meu amor e a ti o reporto:

Por ti todas as culpas eu suporto.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Facundo Cabral - 2


NO ESTÁS DEPRIMIDO


No estás deprimido, estás distraído, distraído de la vida que puebla. Distraído de la vida que te rodea: delfines, bosques, mares, montañas, ríos. No caigas en lo que cayó tu hermano, que sufre por un ser humano cuando en el mundo hay 5,600 millones. Además no es tan malo vivir solo. Yo la paso bien, decidiendo a cada instante lo que quiero hacer, y gracias a la soledad me conozco, algo fundamental para vivir. No caigas en lo que cayó tu padre, que se siente viejo porque tiene 70 años, olvidando que Moisés dirigía el éxodo a los 80 y Rubinstein interpretaba como nadie Chopin a los 90. Solo por citar dos casos conocidos.
No estás deprimido, estás distraído, por eso crees que perdiste algo, lo que es imposible, porque todo te fue dado. No hiciste ni un solo pelo de tu cabeza por lo tanto no puedes ser dueño de nada. Además, la vida no te quita cosas, te libera de cosas. Te aliviana para que vueles mas alto, para que alcances la plenitud. De la cuna a la tumba es una escuela, por eso lo que llamas problemas son lecciones. No perdiste a nadie, el que murió simplemente, se nos adelantó, porque para allá vamos todos. Además lo mejor de él, el amor, sigue en tu corazón. ¿Quién podría decir que Jesús está muerto? No hay muerte: hay mudanza. Y del otro lado te espera gente maravillosa: Gandhi, Michelangelo, Whitman, San Agustín, la Madre Teresa, tu abuela y mi madre, que creía que la pobreza está más cerca del amor, porque el dinero nos distrae con demasiadas cosas, y nos aleja por que nos hace desconfiados.
Haz sólo lo que amas y serás feliz, y el que hace lo que ama, está benditamente condenado al éxito, que llegará cuando deba llegar, porque lo que debe ser será, y llegará naturalmente. No hagas nada por obligación ni por compromiso, sino por amor. Entonces habrá plenitud, y en esa plenitud todo es posible. Y sin esfuerzo porque te mueve la fuerza natural de la vida, la que me levantó cuando se cayó el avión con mi mujer y mi hija; la que me mantuvo vivo cuando los médicos me diagnosticaban 3 ó 4 meses de vida.
Dios te puso un ser humano a cargo, y eres tú mismo. A ti debes hacerte libre y feliz, después podrás compartir la vida verdadera con los demás. Recuerda a Jesús: “Amarás al prójimo como a ti mismo”. Reconcíliate contigo, ponte frente al espejo y piensa que esa criatura que estás viendo es obra de Dios; y decide ahora mismo ser feliz porque la felicidad es una adquisición.
Además, la felicidad no es un derecho sino un deber, porque si no eres feliz, estás amargando a todos los que te aman. Un solo hombre que no tuvo ni talento ni valor para vivir, mandó a matar seis millones de hermanos judíos. Hay tantas cosas para gozar y nuestro paso por la tierra es tan corto, que sufrir es una pérdida de tiempo. Tenemos para gozar la nieve del invierno y las flores de la primavera, el chocolate de la Perugia, la baguette francesa, los tacos mexicanos, el vino chileno, los mares y los ríos, el fútbol de los brasileiros, Las Mil y Una Noches, la Divina Comedia, el Quijote, el Pedro Páramo, los boleros de Manzanero y las poesías de Whitman, Mahler, Mozart, Chopin, Bethoven, Caravaggio, Rembrant, Velásquez, Picasso y Tamayo entre tantas maravillas.
Y si tienes cáncer o sida, pueden pasar dos cosas y las dos son buenas; si te gana, te libera del cuerpo que es tan molesto: tengo hambre, tengo frío, tengo sueño, tengo ganas, tengo razón, tengo dudas….y si le ganas, serás humilde, más agradecido, por lo tanto fácilmente feliz. Libre del tremendo peso de la culpa, la responsabilidad, y la vanidad, dispuesto a vivir cada instante profundamente como debe ser.
No estás deprimido, estás desocupado. Ayuda al niño que te necesita, ese niño será socio de tu hijo. Ayuda a los viejos, y los jóvenes te ayudarán cuando lo seas. Además, el servicio es una felicidad segura, como gozar a la naturaleza y cuidarla para el que vendrá. Da sin medida y te darán sin medidas. Ama hasta convertirte en lo amado, más aún hasta convertirte en el mismísimo amor. Y que no te confundan unos pocos homicidas y suicidas, el bien es mayoría pero no se nota porque es silencioso, una bomba hace más ruido que una caricia, pero por cada bomba que le destruya hay millones de caricias que alimenta a la vida.


Breve biografía
Facundo Cabral nasceu em 22 de maio de 1937 em La Plata, província de Buenos Aires, Argentina. Filho de Sara e de Rodolfo, que abandonou a esposa e os três filhos, que emigraram para a Terra do Fogo, sul da Argentina. Teve uma infância difícil ao ponto de cair na delinquência e ser preso em um reformatório. Tempos depois teve um encontro com Deus ouvindo as palavras de Simeón, um velho vagabundo. Foi morar em Tandil, onde realizou todo tipo de tarefas, de gari a peão de colheitas. Em 1959 já tocava guitarra e cantava, tendo como ídolo, Atahualpa Yupanqui. Mudou-se para Mar del Plata, cidade balneária da Argentina e solicitou trabalho em um hotel. O dono, ao vê-lo com a guitarra lhe deu a oportunidade de cantar. Assim começou sua carreira dedicada a música, sendo seu primeiro nome artístico, “El Indio Gasparino”. O sucesso chega com a canção “No soy de aquí, no soy de allá”, em 1970. Suas canções de protesto em busca do amor incondicional e universal, o levam a peregrinar por 165 países. Em reconhecimento a sua constante jornada pela paz e pelo amor, a UNESCO, lhe concedeu o título de Mensageiro Mundial da Paz.

Alberto Cortez e Facundo Cabral


"Te quiero"

Clique no link e ouça...

Facundo Cabral

Clique no link abaixo e ouça "Cancion sin titulo", uma poesia muito massa do cantor e compositor argentino Facundo Cabral... Aproveitem!
http://br.youtube.com/watch?v=cLWL2NLJAOU

terça-feira, 8 de julho de 2008

Fernando Pessoa - 2

QUASE

Ainda pior que a convicção do não, é a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase!
É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.
Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase amou não amou.
Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.
Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna.
A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e na frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "bom dia", quase que sussurrados.Sobra covardia e falta coragem até para ser feliz.
A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor.
Mas não são.Se a virtude estivesse mesmo no meio-termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
Preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.Para os erros há perdão, para os fracassos, chance, para os amores impossíveis, tempo.
De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma.Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.
Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.
Desconfie do destino e acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando...
Fazendo que planejando...
Vivendo que esperando...
Porque, embora quem quase morre esteja vivo,
quem quase vive já morreu.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

João Cabral de Melo Neto


Tecendo a Manhã


1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(A Educação pela Pedra)

domingo, 11 de maio de 2008

GONZAGA LEÃO - 2

POEMA DOIS

Pude enfim erguer a casa
erguer sem barro sem cal
pedra madeira ou pilastra.
A casa quase irreal
não tocável não palpável
mas simplesmente sonhada.
A casa somente canto
casa somente palavra.
Transparente como vidro
e fugitiva como asas.
Casa que antes de construída
já por ela o vento entrava
e a manhã (se amanhecia)
era essa casa o primeiro
lugar que ela ocupava.
Na cama que não havia
em pensamento eu deitava
e a mulher que eu possuía
era a mulher não chegada
que sem vir sempre partia
e que partindo ficava.
E o vinho que ela servia
simulado como a taça
mais que o real nos tocava.
e a gente punha cuidados
especiais para que
mesa talheres toalha
de repente não voassem.
Pude enfim erguer a casa.
A casa insubsistível
se olhada se observada
se vista como outras casas.
Porque sem área porque
sem paredes sem telhado.
A casa que apenas vi
que senti e que habitei
que somente foi real
depois de desmoronada.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

TESE DE GUERDJEF

Esta é a tese do pensador russo chamado GUERDJEF que no início do século passado já falava em auto conhecimento e da importância de se saber viver bem. Dizia ele: “Uma boa vida tem como base o sentido do que queremos para nós em cada momento, e daquilo que realmente vale como principal”. No Instituto Francês de Ansiedade e Stress (Paris), foram colocadas em destaque, 20 regras de vida que Guerdjef traçou. Dizem os “experts” em comportamento que, que já consegue assimilar 10 delas, com certeza aprendeu a viver com melhor qualidade interior.

1 - Faça pausas de dez minutos a cada duas horas de trabalho, no máximo. Repita essas pausas na vida diária e pense em você, converse com alguém e analise suas atitudes.
2 - Aprenda a dizer não sem se sentir culpado ou achar que magoou. Querer agradar a todos é um desgaste enorme.
3 - Planeje seu dia, sim, mas deixe sempre um bom espaço para o improviso, consciente de que nem tudo depende de você.
4 - Concentre-se em apenas uma tarefa de cada vez. Por mais ágeis que sejam os seus quadros mentais, você se exaure.
5 - Pare de pensar, de uma vez por todas, que você é imprescindível. No trabalho, em casa, no grupo habitual. Por mais que isso lhe desagrade, tudo anda sem a sua atuação, a não ser você mesmo.
6 - Abra mão de ser o responsável pelo prazer de todos. Você não é a fonte dos desejos, o eterno mestre de cerimônias.
7 - Peça ajuda sempre que necessário, tendo o bom senso de pedir às pessoas certas.
8 - Diferencie problemas reais de problemas imaginários e elimine-os porque são pura perda de tempo e ocupam um espaço mental precioso para coisas mais importantes.
9 - Tente descobrir o prazer de fatos cotidianos como dormir, comer e tomar banho, sem também achar que isso é o máximo a se conseguir na vida.
10 - Evite se envolver na ansiedade e tensão alheias. Espere um pouco e depois retome o diálogo, a ação.
11 - Família não é você, está junto de você, compõe o seu mundo, mas não é a sua própria identidade.
12 - Entenda que princípios e convicções fechadas podem ser um grande peso, a trava do movimento e da busca.
13 - É preciso ter sempre alguém em que se possa confiar e falar abertamente ao menos num raio de 100 km Não adianta estar mais longe.
14 - Saiba a hora certa de sair de cena, de retirar-se do palco, de deixar a roda. Nunca perca o sentido da importância sutil de uma saída discreta.
15 - Não queira saber se falaram mal de você e nem se atormente com esse lixo mental; escute o que falaram bem, com reserva analítica, sem qualquer convencimento.
16 - Competir no lazer, no trabalho, na vida a dois, é ótimo… para quem quer ficar esgotado e perder o melhor.
17 - A rigidez é boa na pedra, não no ser humano. A ele cabe firmeza.
18 - Uma hora de intenso prazer substitui com folga 3 horas de sono perdido. O prazer recompõe mais que o sono. Logo, não perca uma oportunidade de divertir-se.
19 - Não abandone suas três grandes e inabaláveis amigas: a intuição, a inocência e a fé.
20 - Entenda de uma vez por todas, definitiva e conclusivamente: você é o que se fizer.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Quem mata menina? - 2

SOBRE A CASA PATERNA

por Dulce Critelli

"Quando o pai deixou a menina em casa e voltou para buscar os outros filhos, será que trancou a porta ou a deixou aberta?" "Esta noite eu sonhei que quem matou a menina ..."

O assassinato de Isabella se impôs como o assunto constante destes últimos dias. Deixou-nos perturbados. E o que experimentamos não me parece ser uma comoção social, como aquela que vivemos quando, no Rio de Janeiro, João Hélio, um garotinho de seis anos, foi arrastado por quilômetros pelo carro dos assaltantes.

Há algo diferente na nossa inquietação. O assassinato de Isabella sugere que alguma coisa saiu do lugar e desarrumou o nosso mundo. Sentimos que, enquanto não decifrarmos seus agentes e suas razões, enquanto não compreendermos o sentido dos fatos, não poderemos retornar para a rotina aquietada dos nossos dias.

Já estamos calejados diante das atrocidades emergentes da violência social. É do mundo aí fora, acreditamos, é dessa selva urbana que insurgem todos os perigos que podem nos alcançar. Mas esse episódio entrou nas nossas casas, tornando vulnerável o único reduto que, nas nossas crenças mais profundas e ancestrais, era inviolável. Não a moradia, mas a casa paterna.

Nas simbologias de diversas culturas, o pai é representado pela coluna dorsal. Ele é a estrutura, o esteio, a força que suporta e dirige, a lei. Mais do que a mãe, é o pai quem oferece a casa para a qual todo filho pródigo pode regressar. Por meio da casa, o pai oferece o abrigo para o repouso e o reencontro depois das aventuras e das experiências fracassadas. A casa paterna é o lugar da segurança.

Isabella resumiu a nossa própria criança, a criança que confia e precisa confiar em sua segurança. Com ela, acreditamos que, enquanto dormimos, alguém nos vigia. Que se algo nos atacar, seremos defendidos. Que não perambulamos pela vida desabrigados e expulsos do paraíso.

Às vezes, os eventos que precisamos desesperadamente compreender para nos reinserirmos na vida são de natureza política, como ocorreu com o nazismo. Outros vêm da morte de alguém querido, de um casamento desfeito, de uma catástrofe natural que arrasa a terra, como tsunamis, incêndios e terremotos.

Mas esse acontecimento com que nos deparamos vem da angústia de nosso desamparo. Vem da suspeita do "pai". Se o "pai" for o transgressor, a moral está falida. Se o "pai" for a origem do mal, é como se descobríssemos que o mal está na raiz de nossa natureza e, portanto, projeta-se infinitamente sobre nosso futuro. Sem contenção, sem advertência, sem limite.

Se o mal vier do pai, quem poderá nos abençoar?


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana.
Folha de São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq1704200801.htm

Quem mata menina?

COMOÇÃO PELA MORTE DE ISABELLA

A tragédia nos lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira "moderna" de casar.

por Contardo Calligaris

Hoje, quarta-feira [9/4/2008], quando acabo esta coluna, não conhecemos os eventos que levaram à morte de Isabella Nardoni; só sabemos que a menina, de cinco anos, foi assassinada, intencionalmente ou não, enquanto estava na custódia do pai e da madrasta. E conhecemos um pouco a história da família: a mãe e o pai de Isabella não chegaram a se juntar -- foi um romance adolescente que acabou antes de Isabella nascer. O pai tem dois filhos pequenos com sua mulher atual.

É uma situação trivial: a pensão mensal, as visitas, o padrasto ou a madrasta, os meio-irmãos etc. Mas a banalidade dessa situação não deveria disfarçar o emaranhado de afetos dolorosos que ela produz -- afetos que muitos vivem e que todos preferimos esquecer.

Não sei se esses afetos são responsáveis pela morte de Isabella. Mas talvez eles sejam responsáveis pela extraordinária comoção produzida pela sua morte. Como assim?

A morte violenta de uma criança nos fere a todos: é como se, ao mesmo tempo, alguém nos arrancasse um pedaço de nosso próprio futuro e destruísse a fantasia nostálgica da infância, que sempre cultivamos, mesmo que o primeiro período de nossa vida tenha sido infeliz.

Mas a história de Isabella nos comove também por outra razão: as tentativas de "explicar" o acontecido evocam, inevitavelmente, as dificuldades de nossa maneira "moderna" de casar.

São dificuldades nas quais, em geral, preferimos evitar de pensar.

É comum que o marido ou a mulher (às vezes, ambos) levem para o casamento filhos que são frutos de uma relação anterior. Espera-se que isso aconteça sem complicação: afinal, se descasamos e casamos por amor, por que o mesmo amor não reinaria pelo lar todo? Pois é, o amor é uma coisa complicada.

Exemplos...

A rivalidade, que sempre existe entre irmãos, vinga entre enteados e meio-irmãos. E vinga redobrada, justamente por ser mais inconfessável do que a rivalidade entre irmãos -- por ser silenciosa, reprimida pelo esforço geral de compor uma nova família ideal, em que todos os integrantes se amariam.

Na nova família, à primeira vista, o homem convive com seus enteados melhor do que a mulher. Não é nenhum milagre do "instinto" paterno: o homem encontra uma satisfação narcisista no exercício da paternidade. Ele, aliás, curte ser e se sentir amado por suas qualidades "paternas". Para ele, saber ser pai de filhos e enteados faz parte de uma virilidade que ele quer que seja reconhecida e festejada pela mulher.

Mas cuidado: a encenação da paternidade, embora às vezes espalhafatosa, não resiste à pressão da culpa de dar para seus filhos de sangue menos do que para seus enteados.

Essa culpa, envergonhada e reprimida, é inevitável, porque há uma coisa que o homem, na grande maioria dos casos, dá mais aos enteados do que aos filhos: sua própria presença no lar.

A mulher, ao contrário, vive quase sempre uma rivalidade dramática com seus enteados: compete com eles como se ela fosse mais uma filha. Para a mulher, o enteado ou a enteada não usurpam o lugar dos filhos que ela trouxe de um casamento anterior, nem o lugar dos filhos que nasceram no novo casamento: eles ameaçam usurpar o próprio lugar dela. Essa rivalidade, escondida, expressa-se de maneiras travessas: por exemplo, numa crítica assídua das manifestações do afeto paterno do homem para com o filho ou a filha dele. Ou seja, para não admitir um ciúme envergonhado do enteado, a mulher censura o "excesso" dos sentimentos paternos do marido. Esse, criticado como pai, sente-se diminuído como homem. O desastre está às portas.

São apenas exemplos. O casamento "moderno" é um nó de afetos reprimidos, uma convivência explosiva que aposta no amor do casal como se fosse remédio para todos os males.

Não se trata de condenar a idéia de que seja possível refazer sua vida com outro ou outra e, nessa ocasião, levar consigo os filhos dos casamentos anteriores. Mas seria melhor que a gente se engajasse nesses projetos sem a ilusão de que os bons sentimentos prevalecerão por conta própria. Seria melhor, para começar, que nossas disposições menos nobres, em vez de silenciadas e reprimidas, fossem faladas, explicitadas. Isso, para evitar que, de vez em quando, a trágica morte de uma menina nos lembre, por um dia ou uma semana, que a vida das famílias "modernas" é muito mais difícil do que parece.

Folha de São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1004200833.htm

domingo, 23 de março de 2008

Carlos Drummond de Andrade


Receita de ano novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano não apenas pintado de novo,
remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta.


Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados,
começando pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo,
eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

AUGUSTO DOS ANJOS


VERSOS ÍNTIMOS


Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.


Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

domingo, 9 de março de 2008

PAULO LEMINSK


Incenso Fosse Música


isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

sexta-feira, 7 de março de 2008

JESSIER QUIRINO


Agruras da Lata D'água

...E eu que fui enjeitada

Só porque era furada.

Me botaram um pau na boca,

Sabão grudaram no furo,

Me obrigaram a levar água

Muitas vezes pendurada,

Muitas vezes num jumento.


Era aquele sofrimento,

As juntas enferrujadas.

Fiquei com o fundo comido.

Quando pensei que tivesse

Minha batalha cumprido,

Um remendo me fizeram:

Tome madeira no fundo

E tome água e leva água,

E tome água e leva água.


Daí nasceu minha mágua:

O pau da boca caía,

Os beiços não resistiam.

Me fizeram um troca-troca:

Lá vem o fundo pra boca,

Lá vai o pau para o fundo.

Que trocado mais sem graça

Na frente de todo mundo.

E tome água e leva água

E tome água e leva água.


Já quase toda enfadada,

Provei lavagem de porco,

Ai mexeram de novo:

Botaram o pau na beirada.

E assim desconchavada,

Medi areia e cimento,

Carreguei muito concreto

Molhado duro e friento,

Sofri de peitos aberto,

Levei baque dei peitada.


Me amassaram as beiradas,

Cortaram minhas entranhas.

Lá fui eu assar castanha,

Fui por fim escancarada.

Servi de cocho de porco

Servi também de latada.


Se a coisa não complica,

Talvez eu seja uma bica

Pela próxima invernada.

E inverno é chuva, é água,

E eu encherei outras latas

Cumprindo minha jornada.

GONZAGA LEÃO

Soneto Um


No chão marcas de pés sujos de lama;
o alpendre para o sonho e para a rede;
janelas para a fuga; na parede
o salto do telhado; a noite e a cama

com destinos iguais para quem ama:
- água e fonte servindo `a mesma sede.
A casa em construção ainda, que de
de suor e barro se edifica, chama

para se completar, seus moradores.
Fumo de chaminé nos arredores
da noite terminada. E, no profundo

silêncio com que a vida se cobria,
um galo bate as asas e anuncia
a casa e a manhã dentro do mundo.

domingo, 2 de março de 2008

B.F. SKINNER

SOBRE O BEHAVIORISMO

O Behaviorismo não é a ciência do comportamento humano, mas, sim, a filosofia dessa ciência. Algumas das questões que ele propõe são: É possível tal ciência? Pode ela explicar cada aspecto do comportamento humano? Que métodos pode empregar? São suas leis tão válidas quanto as da Física e da Biologia? Proporcionará ela uma tecnologia e, em caso positivo, que papel desempenhará nos assuntos humanos? São particularmente importantes suas relações com as formas anteriores de tratamento do mesmo assunto. O comportamento humano é o traço mais familiar do mundo em que as pessoas vivem, e deve ter dito mais sobre ele do que sobre qualquer outra coisa. E de tudo o que foi dito, o que vale a pena ser conservado?Algumas dessas questões serão eventualmente respondidas pelo êxito ou pelo malogro das iniciativas científica e tecnológica, mas colocam-se alguns problemas atuais, os quais exigem que respostas provisórias sejam dadas de imediato. Muitas pessoas inteligentes acreditam que as respostas já foram encontradas e que nenhuma delas é promissora. Eis, como exemplo, algumas das coisas comumente ditas sobre o Behaviorismo ou a ciência do comportamento. Creio que são todas falsas.1. O Behaviorismo ignora a consciência, os sentimentos e os estados mentais.2. Negligencia os dons inatos e argumenta que todo comportamento é adquirido durante a vida do indivíduo.3. Apresenta o comportamento simplesmente como um conjunto de respostas a estímulos, descrevendo a pessoa como um autômato, um robô, um fantoche ou uma máquina.4. Não tenta explicar os processos cognitivos.5. Não considera as intenções ou os propósitos.6. Não consegue explicar as realizações criativas -- na Arte, por exemplo, ou na Música, na Literatura, na Ciência ou na Matemática.7. Não atribui qualquer papel ao eu ou à consciência do eu.8. É necessariamente superficial e não consegue lidar com as profundezas da mente ou da personalidade.9. Limita-se à previsão e ao controle do comportamento e não apreende o ser, ou a natureza essencial do homem.10. Trabalha com animais, particularmente com ratos brancos, mas não com pessoas, e sua visão do comportamento humano atém-se, por isso, àqueles traços que os seres humanos e os animais têm em comum.11. Seus resultados, obtidos nas condições controladas de um laboratório, não podem ser reproduzidos na vida diária, e aquilo que ele tem a dizer acerca do comportamento humano no mundo mais amplo torna-se, por isso, uma metaciência não-comprovada.12. Ele é supersimplista e ingênuo e seus fatos são ou triviais ou já bem conhecidos.13. Cultua os métodos da Ciência mas não é científico; limita-se a emular as Ciências.14. Suas realizações tecnológicas poderiam ter sido obtidas pelo uso do senso comum.15. Se suas alegações são válidas, devem aplicar-se ao próprio cientista behaviorista e, assim sendo, este diz apenas aquilo que foi condicionado a dizer e que não pode ser verdadeiro.16. Desumaniza o homem; é redutor e destrói o homem enquanto homem.17. Só se interessa pelos princípios gerais e por isso negligencia a unicidade do individual.18. É necessariamente antidemocrático porque a relação entre o experimentador e o sujeito é de manipulação e seus resultados podem, por essa razão, ser usados pelos ditadores e não pelos homens de boa vontade.19. Encara as idéias abstratas, tais como moralidade ou justiça, como ficções.20. É indiferente ao calor e à riqueza da vida humana, e é incompatível com a criação e o gozo da arte, da música, da literatura e com o amor ao próximo.Creio que estas afirmações representam uma extraordinária incompreensão do significado e das realizações de uma empresa científica. Como se pode explicar isso? A história dos primórdios do movimento talvez tenha causado confusão. O primeiro behaviorista explícito foi John B. Watson, que, em 1913, lançou uma espécie de manifesto chamado A Psicologia tal Como a Vê um Behaviorista. Como o título mostra, ele não estava propondo uma nova ciência mas afirmando que a Psicologia deveria ser redefinida como o estudo do comportamento. Isto pode ter sido um erro estratégico. A maioria dos psicólogos da época acreditava que seus estudos estavam voltados para os processos mentais num mundo mental consciente e, naturalmente, não se sentiam propensos a concordar com Watson. Os primeiros behavioristas gastaram muito tempo e confundiram um problema central importante ao atacar o estudo introspectivo da vida mental.O próprio Watson fez importantes observações acerca do comportamento instintivo e foi, na verdade, um dos primeiros etologistas no sentido moderno; impressionou-se muito, porém, com as novas provas, acerca daquilo que um organismo podia aprender a fazer, e fez algumas alegações exageradas, acerca do potencial de uma criança recém-nascida. Ele próprio considerou-as exageradas, mas, desde então, tais alegações têm sido usadas para desacreditá-lo. Sua nova ciência nascera, por assim dizer, prematuramente. Dispunha-se de muito poucos fatos relativos ao comportamento -- particularmente o comportamento humano. A escassez de fatos é sempre um problema para uma ciência nova, mas para o programa agressivo de Watson, num campo tão vasto quanto o do comportamento humano, era particularmente prejudicial. Fazia-se mister um suporte de fatos maior do que aquele que Watson foi capaz de encontrar e, por isso, não é de surpreender que muitas de suas declarações pareçam simplificadas e ingênuas.Entre os fatos de que dispunha, relativos ao comportamento, estavam os reflexos e os reflexos condicionados, e Watson explorou-os ao máximo. Todavia, o reflexo sugeria um tipo de causalidade mecânica que não era incompatível com a concepção que, o século XIX tinha de uma máquina. A mesma impressão fora dada pelo trabalho do filósofo russo Pavlov, publicado mais ou menos na mesma época, e não foi corrigida pela psicologia do estímulo-resposta, surgida nas três ou quatro décadas seguintes.

sábado, 1 de março de 2008

CASTRO ALVES


A duas flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!

ÁLVARES DE AZEVEDO


Meu anjo

Meu anjo tem o encanto, a maravilha,
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto.
É leve a criatura vaporosa
Como a froixa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte num desdém, num beijo vida,
E celestes desmaios num sorrizo!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

OLEGÁRIO MARIANO


ARREPENDIMENTO


Deste amor torturado e sem ventura
Resta-me o alívio do arrependimento.
O pouco que me deste de ternura
Não vale o que te dei de encantamento.


Abri para o teu sonho o firmamento,
Semeei de estrelas tua noite escura.
Dei-te alma, exaltação e sentimento.
Fiz de um bloco de pedra uma criatura.


Hoje, ambos à mercê de sorte avessa,
Se para te esquecer luto e me esforço,
Manda-me o coração que não te esqueça.


Padecemos idêntico suplício:
Tu - corroída de pena e de remorso,
Eu - com vergonha do meu sacrifício.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

FLORBELA ESPANCA


EU

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

LUÍS VAZ DE CAMÕES

Soneto 005

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

ANTONIO MACHADO - 2

Cantares...

Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.
Nunca perseguí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse...
Nunca perseguí la gloria.

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino
sino estelas en la mar...

Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques
se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."
Golpe a golpe, verso a verso...

Murió el poeta lejos del hogar.
Le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse le vieron llorar.
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."
Golpe a golpe, verso a verso...

Cuando el jilguero no puede cantar.
Cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."
Golpe a golpe, verso a verso.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

ANTONIO MACHADO - 1


Dijo una voz popular:
Quién me presta una escalera
para subir al madero para
quitarle los clavos
a Jesús el Nazareno?
Oh, la saeta, el cantar
al Cristo de los gitanos
siempre con sangre en las manos
siempre por desenclavar.
Cantar del pueblo andaluz
que todas las primaveras
anda pidiendo escaleras
para subir a la cruz.
Cantar de la tierra mía
que echa flores
al Jesús de la agonía
y es la fe de mis mayores !
Oh, no eres tú mi cantar
no puedo cantar, ni quiero
a este Jesús del madero
sino al que anduvo en la mar!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

CECÍLIA MEIRELES




ÍSIS



E diz-me a desconhecida:"
Mais depressa! Mais depressa!"
Que eu vou te levar a vida! . . .

"Finaliza! Recomeça!"
Transpõe glórias e pecados! . . .
"Eu não sei que voz seja essa

Nos meus ouvidos magoados:
Mas guardo a angústia e a certeza
De ter os dias contados . . .

Rolo, assim, na correnteza
Da sorte que se acelera,
Entre margens de tristeza,

Sem palácios de quimera,
Sem paisagens de ventura,
Sem nada de primavera . . .

Lá vou, pela noite escura,
Pela noite de segredo,
Como um rio de loucura . . .

Tudo em volta sente medo . . .
E eu passo desiludida,
Porque sei que morro cedo . . .

Lá me vou, sem despedida . . .
Às vezes, quem vai, regressa . . .
E diz-me a Desconhecida:

"Mais depressa" Mais depressa" . . .

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

WALT WHITMAN


O Captain my Captain!

O Captain my Captain! our fearful trip is done,
The ship has weathered every rack, the prize we sought is won,
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring;
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.
O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up--for you the flag is flung for you the bugle trills,
For you bouquets and ribboned wreaths for you the shores a-crowding,
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head!
It is some dream that on the deck,
You've fallen cold and dead.
My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchored safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip the victor ship comes in with object won;
Exult O shores, and ring O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

Ateus e ateus

Há dois tipos de ateus: os que não acreditam que Deus existe e os que acreditam piamente que Deus não existe. Os primeiros relutam em crer naquilo de que não têm experiência. Os segundos não admitem que possa existir algo acima da sua experiência. A diferença é a mesma que há entre o ceticismo e a presunção de onissapiência.
Acima da distinção de ateus e crentes existe a diferença, assinalada por Henri Bergson, entre as almas abertas e as almas fechadas. Vou explicá-la a meu modo. Como tudo o que sabemos é circunscrito e limitado, vivemos dentro de uma redoma de conhecimento incerto cercada de mistério por todos os lados. Isso não é uma situação provisória. É a própria estrutura da realidade, a lei básica da nossa existência. Mas o mistério não é uma pasta homogênea. Sem poder decifrá-lo, sabemos antecipadamente que ele se estende em duas direções opostas: de um lado, a suprema explicação, a origem primeira e razão última de todas as coisas; de outro, a escuridão abissal do sem-sentido, do não-ser, do absurdo. Há o mistério da luz e o mistério das trevas. Ambos nos são inacessíveis: a esfera de meia-luz em que vivemos bóia entre os dois oceanos da claridade absoluta e da absoluta escuridão.
O simbolismo imemorial dos estados "celestes" e "infernais" demarca a posição do ser humano no centro do enigma universal. Essa situação - a nossa situação - é de desconforto permanente. Ela exige de nós uma adaptação ativa, dificultosa e problemática. Daí as opções da alma: a abertura ao infinito, ao inesperado, ao heterogêneo, ou o fechamento auto-hipnótico na clausura do conhecido, negando o mais-além ou proclamando com fé dogmática a sua homogeneidade com o conhecido. A primeira dá origem às experiências espirituais das quais nasceram os mitos, a religião e a filosofia. A segunda leva à "proibição de perguntar", como a chamava Eric Voegelin: a repulsa à transcendência, a proclamação da onipotência dos métodos socialmente padronizados de conhecer e explicar.
A religião é uma expressão da abertura, mas não é a única. A simples admissão sincera de que pode existir algo para lá da experiência usual basta para manter a alma alerta e viva. É possível ser ateu e estar aberto ao espírito. Mas o ateu militante, doutrinário, intransigente, opta pela recusa peremptória do mistério, deleitando-se no ódio ao espírito, na ânsia de fechar a porta do desconhecido para melhor mandar no mundo conhecido.
Dostoiévsky e Nietzsche bem viram que, abolida a transcendência, só o que restava era a vontade de poder. Aquele que proíbe olhar para cima faz de si próprio o topo intransponível do universo. É uma ironia trágica que tantos adeptos nominais da liberdade busquem realizá-la através da militância anti-religiosa. As religiões podem ter-se tornado violentas e opressivas ocasionalmente, mas a anti-religião é totalitária e assassina de nascença. Não é uma coincidência que a Revolução Francesa tenha matado dez vezes mais gente em um ano do que a Inquisição Espanhola em quatro séculos. O genocídio é o estado natural da modernidade "iluminada".

Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 15 de março de 2007

MÁRIO QUINTANA


    • [O Trágico Dilema]Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

    • A poesia não se entrega a quem a define.

    • A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda.

    DA FELICIDADE

    Quantas vezes a gente, em busca da ventura,

    Procede tal e qual o avozinho infeliz:

    Em vão, por toda parte, os óculos procura

    Tendo-os na ponta do nariz!


    Quem faz um poema abre uma janela.

    Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela.

    Por isso é que os poemas têm ritmo- para que possas profundamente respirar.

    Quem faz um poema salva um afogado.

    sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

    RUBEM ALVES

    3. Mitos são profecias – representações poéticas do destino humano. A Torre de Babel – símbolo da mais arrogante pretensão dos homens: queriam ser iguais a Deus, queriam ter poder absoluto. Pensavam que o poder, forte, lhes garantiria o viver, fraco. Mas quando o “amor ao poder“ se torna o motivo dominante das ações humanas, a linguagem entra em colapso: os homens perdem a capacidade de se entender: a confusão das línguas. O dinheiro é o símbolo supremo do amor ao poder. Nele estão as sementes da autodestruição. No dia 11 de setembro de 2001 o mito se transformou em história: a destruição das Torres...
    5. Globalização. Globo. Tudo está ligado numa estrutura única. Globalização: todas as partes do nosso mundo estão inter-ligadas. O dinheiro faz as ligações. Dinheiro é poder. O poder não entende a linguagem do amor. Daí a “confusão das línguas“. Essa é uma das lições mais preciosas de Marx: o capitalismo não conhece os “valores de uso“ – ligados à vida; só conhece os “valores de troca“, ligados ao dinheiro.
    11. Psicologia: pus-me na posição do piloto, seu avião apontado na direção da Torre. Imaginei o que teria sentido. Medo? De forma alguma. Certamente havia um sorriso nos seus lábios. Ele devia estar possuído por uma alegria imensa, inebriado pelo seu deus: a Morte. O desejo de vingança é um dos desejos mais profundos e mortíferos da alma humana.
    12. Sansão, como é sabido, foi um herói bíblico, de força descomunal. Seduzido por Dalila, filistéia linda, ele lhe revela o segredo de sua força: os cabelos. E ela, valendo-se do seu sono, os corta. Fraco, é preso pelos seus inimigos que lhe furam os olhos. O que se segue é a transcrição de um texto bíblico. Sansão estava cego mas seus cabelos haviam crescido. É então levado pelos seus inimigos para uma grande celebração de triunfo, num templo. “E Sansão clamou por Deus e disse: Dá-me forças para me vingar dos Filisteus... E Sansão se colocou entre as duas colunas sobre as quais a estrutura do templo se apoiava, a mão direita contra uma, a mão esquerda contra a outra – e sobre elas colocou toda a sua força. E o templo ruiu sobre os líderes e sobre o povo. E assim, aqueles que ele matou com sua morte foram mais numerosos que todos os que havia morto com a sua vida...“ (Livro de Juizes 17: 28-30). É possível que a lenda do piloto esteja sendo contada ao lado da lenda de Sansão...
    13. Os terroristas não se chamam terroristas. Somos nós que lhes damos esse nome. Eles se acreditam instrumentos de Deus para o estabelecimento da verdade. Não são suicidas. São mártires que se sacrificam para que a verdade triunfe. Aquelas Torres eram templos do Demônio. Haverá coisa mais importante no mundo que derrotar o Demônio? Contra ele todos os métodos são legítimos. Que são umas poucas vidas quando o destino do universo está em jogo? Não era assim que pensava a Igreja quando acendia fogueiras para queimar os hereges em praça pública, em espetáculos oferecidos para prazer e edificação espiritual das pessoas mais delicadas e religiosas?
    (Correio Popular, Caderno C, 16/09/2001.)

    FERNANDO PESSOA


    Uns

    Uns, com os olhos postos no passado,
    Vêem o que não vêem: outros, fitos
    Os mesmos olhos no futuro, vêem
    O que não pode ver-se.


    Por que tão longe ir pôr o que está perto —
    A segurança nossa?
    Este é o dia, Esta é a hora, este o momento, isto
    É quem somos, e é tudo.


    Perene flui a interminável hora
    Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
    Em que vivemos, morreremos.
    Colhe o dia, porque és ele.

    quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

    PAUL TILLICH


    A verdade da doutrina dos poderes angélicos e demoníacos é que existem estruturas supra-individuais de bondade e estruturas supra pessoais de maldade. Anjos e demônios são nomes mitológicos para poderes construtivos e destrutivos do ser, que são ambiguamente entrelaçados e que se combatem mutuamente na mesma pessoa, no mesmo grupo social, e na mesma situação histórica. Eles não são seres, mas poderes de ser dependentes da estrutura global da existência e implicados na vida ambígua. O Homem é responsável pela transição da essência à existência porque ele tem liberdade finita e porque todas as dimensões da realidade estão unidas nele.
    TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. Sinodal – IEPG. São Leopoldo. 2000. p 285 e 286

    segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

    SIGMUND FREUD - Citações...



    • "Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando. Charcot, que é um dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está simplesmente desarraigando minhas metas e opiniões. Por vezes, saio de suas aulas como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não sinto mais nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há três dias inteiros não faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro está saciado, como se eu tivesse passado uma noite no teatro. Se a semente frutificará algum dia, não sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa maneira..."
      Trecho de uma carta que Freud escreveu à futura esposa logo após ter chegado a Paris (24/11/1885) [ES, III, 19-20]



    • "Se é verdade que a causação das enfermidades histéricas se encontra nas intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos são a expressão de seus mais secretos desejos recalcados, a elucidação completa de um caso de histeria estará fadada a revelar essas intimidades e denunciar esses segredos."
      Trecho de "Fragmento da Análise de Um Caso de Histeria" (1905[1901]) [ES, VII, 5-6]


    A POESIA MATUTA DE ZÉ DA LUZ

    Ai! Se sêsse!...

    Se um dia nós se gostasse;
    Se um dia nós se queresse;
    Se nós dos se impariásse,
    Se juntinho nós dois vivesse!
    Se juntinho nós dois morasse
    Se juntinho nós dois drumisse;
    Se juntinho nós dois morresse!
    Se pro céu nós assubisse?
    Mas porém, se acontecesse
    qui São Pêdo não abrisse
    as portas do céu e fosse,
    te dizê quarqué toulíce?
    E se eu me arriminasse
    e tu cum insistisse,
    prá qui eu me arrezorvesse
    e a minha faca puxasse,
    e o buxo do céu furasse?...
    Tarvez qui nós dois ficasse
    tarvez qui nós dois caísse
    e o céu furado arriasse
    e as virge tôdas fugisse!!!

    sábado, 26 de janeiro de 2008

    OLAVO BILAC

    De outras sei
    IX
    De outras sei que se mostram menos frias,
    Amando menos do que amar pareces.
    Usam todas de lágrimas e preces:
    Tu de acerbas risadas e ironias.

    De modo tal minha atenção desvias,
    Com tal perícia meu engano teces,
    Que, se gelado o coração tivesses,
    Certo, querida, mais ardor terias.

    Olho-te: cega ao meu olhar te fazes ...
    Falo-te — e com que fogo a voz levanto!
    —Em vão... Finges-te surda às minhas frases...

    Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
    Cega: e nem vês a nova dor que trazes
    À dor antiga que doía tanto!

    GLAUCO MATTOSO


    655 SHANGRILADO [a Omar Khouri] [2003]


    Chamada de "Anti-Alá", "Grande Satã",

    a bélica potência americana,

    de olho no petróleo, negra grana,

    investe contra o Iraque de Saddam.


    Sem ser do ditador capanga ou fã,

    vê cada muçulmano com que gana

    o sacro território lhe profana

    o ianque, como agira no Vietnam.


    Os Bushes, novos "boches", são "nazistas",

    "falcões do imperialismo", mas por trás

    da América há Sharons capitalistas.


    Franceses, russos, fingem pedir paz...

    O mundo, aos civis mortos, grossas vistas

    em nome dum "pós-guerra humano" faz.

    BRÁULIO TAVARES


    Eis um verdadeiro clássico da poesia erótica brasileira (apesar da linguagem um tanto chula)

    Poema da buceta cabeluda

    A buceta da minha amada
    tem pêlos barrocos, lúdicos, profanos.
    É faminta como o polígono-das-secas
    e cheia de ritmos como o recôncavo-baiano.
    A buceta da minha amada é cabeluda como um tapete persa.
    É um buraco-negro bem no meio do púbis do Universo.
    A buceta da minha amada é cabeluda, misteriosa, sonâmbula.
    É bela como uma letra grega:
    é o alfa-e-ômega dos meus segredos,
    é um delta ardente sob os meus dedos
    e na minha língua é lambda.
    A buceta da minha amada é um tesouro
    é o Tosão de Ouro é um tesão.
    É cabeluda, e cabe, linda, em minha mão.
    A buceta da minha amada me aperta dentro,
    de um tal jeito que quase me morde;
    e só não é mais cabeluda do que as coisas
    que ela geme quando a gente fode.

    sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

    ZÉ DUDA DO ZUMBI

    José Duda do Zumbi (Manoel Galdino da Silva Duda), no ocaso da vida, com a experiência da idade, disse para José Miguel, jovem companheiro, com quem duelava:

    Fui moço, hoje estou velho!
    Pois o tempo tudo muda!
    Já fui um dos cantadores
    Chamado Deus nos acuda ...
    Este que estão vendo aqui
    Foi Zé Duda do Zumbi!
    Hoje Zumbi do Zé Duda!

    CEGO ADERALDO: Poeta e Cantador


    Certa vez, em uma palestra, Leonardo Mota leu para o cego Aderaldo umas estrofes em que Luís Dantas Quesado falava de coisas difíceis de serem vistas. Imediatamente, o cego repentista improvisou estas sextilhas:


    Só nos falta vê agora

    carrapato em farinha

    Cobra com bicho-de-pé

    Foice metida em bainha

    Tarrafa feita sem linha


    Muito breve há de se vê

    Pisá-se vento em pilão

    Botá freio em caranguejo

    Fazê de gelo carvão

    Carregá água em balaio

    Burro subi em balão.


    (MOTA, Leonardo. Cantadores)

    Cego Aderaldo

    Quando sua mãe morreu, Aderaldo foi tentar conseguir algum dinheiro para fazer o sepultamento dela, pois, viviam em extrema pobreza. Sabendo que tinha chegado à cidade um grupo de homens endinheirados ele dirigiu-se ao bar onde eles estavam bebendo e se deu o seguinte diálogo narrado pelo próprio poeta:
    - É este o cego que canta? – perguntou um deles. - Sou, sim senhor. E vim aqui, batido pelo infortúnio, pedir a tanta nobreza um auxílio para enterrar minha mãezinha... Ouvi alguém dizer: - Ah, morreu-lhe a mãezinha... Houve uma espécie de risada. Os corpos tiniram. Acho que se serviram outra vez. - Bem, nós ajudamos, mas primeiro você tem que cantar! Outro mais atrevido: - Falou que a mãe dele morreu? Não vale nada! Quem tem a mãe viva, tem o Diabo para atentar! Aí, o sangue subiu. Mas logo me lembrei dos conselhos que minha mãe me dera antes de morrer. A provação começava. Era o mundo com sua corte de maldade, me experimentamos. - Cante, ceguinho, que nós lhe damos uma esmola. Eu temperei a garganta, limpando o entalo, e com o coração cheio de dor, cantei então:

    “ Oh! Meu Deus do alto céu,
    Lá da celeste cidade,
    Ouça-me cantar á força
    Devido á necessidade,
    Aqui chorando e cantando
    E mamãe na eternidade...

    Perdoe, minha Mãe querida,
    Não é por minha vontade:
    São os torturas da vida
    Que vêm com tanta maldade,
    Chorarei meus sentimentos
    De vê-la na Eternidade!”

    Manuel Bandeira





    O SILENCIO


    Na sombra cúmplice do quarto,

    Ao contacto das minhas mãos lentas

    A substância da tua carne

    Era a mesma que a do silêncio.

    Do silêncio musical, cheio

    De sentido místico e grave,

    Ferindo a alma de um enleio

    Mortalmente agudo e suave.

    Ah, tão suave e tão agudo!

    Parecia que a morte vinha…

    Era o silêncio que diz tudo

    O que a intuição mal advinha.

    É o silêncio da tua carne.

    da tua carne de âmbar, nua,

    Quase a espiritualizar-se

    Na aspiração de mais ternura.

    quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

    O que é Literatura de Cordel


    As origens da Literatura de Cordel (LC) brasileira ainda hoje permanecem sujeitas a controvérsias que geraram, ao longo do tempo, debates calorosos a respeito de sua descendência européia ou seu surgimento no Nordeste do Brasil. É certo que a LC possui raízes na literatura oral e sendo uma poesia narrativa, encontramos práticas similares na antiga Grécia, Ásia, África e na Europa. O fato de que as primeiras histórias do cordel brasileiro tenham sido adaptações dos romances de cavalaria da Europa medieval, também reforça a tese da origem ultramarina; em Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda e Alemanha já existiam folhetos em prosa e poesia vendidos nas feiras a preços baixos narrando histórias tradicionais como: Carlos Magno e os doze pares de França, Princesa Magalona, Imperatriz Porcina, Donzela Teodora, Roberto do Diabo; fatos históricos e até poesia erudita – como Góngora e as trovas de Gil Vicente – eram transcritos para os livretos e declamados pelos menestréis e jograis. Toda essa literatura volante européia certamente chegou ao continente americano; no México, por exemplo, encontramos um tipo de desafio verbal semelhante ao dos repentistas nordestinos, chamado de “contrapunteo”, além do “corrido” – folheto semelhante ao nosso cordel narrando histórias tradicionais em verso ou prosa –, que também se manifesta na Nicarágua, no Peru, no Chile e na Argentina. Tomemos como exemplo este corrido da época da revolução mexicana intitulado “El fusilamiento del general Felipe Ángeles”:

    Em mil novecientos veinte
    señores, tengan presente,
    fusilaron em Chihuahua
    um general muy valiente.

    Em la estacion de la Aurora
    el valiente general,
    com veinte hombres que traía,
    se lês paraba formal.

    Alli perdió diez dragones
    de los veinte que traía
    y com el resto se fué
    por toda la serrania.

    O termo “literatura de cordel” – herança lusitana – é derivado da forma de exposição dos folhetos, pendurados em barbantes, nas feiras, praças e ruas de Portugal; no entanto, também receberam outras denominações, como “folhas soltas”, “folhas volantes” e “literatura de cegos”, já que a comercialização foi feita durante muito tempo pela Irmandade do Menino Jesus dos Cegos de Lisboa, que, em 1789, obteve os direitos exclusivos de venda. Na Espanha, os folhetos eram conhecidos como “pliegos sueltos” ou simplesmente “hojas”, chegaram a ser proibidos pelo rei Carlos III devido ao plágio das obras eruditas e seu humor obsceno; na França era “littérature de colportage”, ou literatura volante, dividida em “occasionnels” para o público rural e “canard” para o urbano; na Inglaterra os folhetos também eram divididos em duas categorias, os “cocks” ou “catchpennies” para os romances, e os “broadsides (lado largo)” para os fatos históricos; na Holanda e na Alemanha os folhetos datam do século XV e XVI, contando inclusive com um tipo de apresentação semelhante ao cordel brasileiro, xilogravura temática na capa e formato tipográfico similar; e, fato curioso, são nesses dois países que aparecem os primeiros livretos de cordel que falam sobre o Brasil, como o que traz a história de Hans Staden. Slater (1984:10) observa que as versões orais e escritas dos folhetos portugueses influenciaram o cordel nordestino, mas salienta uma peculiaridade de nosso cordel: “com exceção de pequeno número de preces em prosa”, ele é exclusivamente poético. Um outro aspecto que também aproxima o nosso cordel de seus congêneres europeus é a derivação da literatura oral com sua forma característica de divulgação: trovadores, menestréis e jograis levavam às massas populares nas feiras e festividades, uma versão cantada da literatura erudita consumida pela “corte” e pelo clero; e no Nordeste, muito antes da existência dos livretos de cordel, nossos “repentistas” e “cantadores” faziam a alegria das feiras e festas com os desafios verbais – pelejas – e histórias de amor e heroísmo para o deleite do povo analfabeto e semi-alfabetizado do sertão e agreste nordestino.