quinta-feira, 18 de junho de 2020

FREUD E O SENTIDO DA VIDA


FREUD E O SENTIDO DA VIDA
Freud and the meaning of life
Antonio Lima
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
RESUMO: Nesse momento de pandemia em que um vírus letal e desconhecido põe em risco nossa existência, desnuda nossa fragilidade e solapa nossa fantasia de imortalidade, vê-se cada vez mais questionamentos sobre o “Sentido da vida”. Como a Filosofia e mais especificamente a Psicanálise compreendem o “Sentido da vida” e qual a relevância do pensamento freudiano e de suas implicações para a compreensão da cultura são os objetivos deste artigo. Para realizar tal tarefa analisamos as principais obras de Freud cuja temática central é a relação do sujeito com a sociedade (cultura) na qual se constroem e se reproduzem significações e sentidos que apontam para uma solução transcendental de natureza religiosa. A crítica psicanalítica incide nessa dinâmica em que a noção de “sentido da vida” se mistura as fantasias do sujeito, desprotegido e infantilizado na relação com o Outro, levando-o a colocar a questão do “sentido da vida” no plano espiritual e religioso cuja consequência seria o afastamento da realidade, denegação, como forma de aplacar os sentimentos dolorosos de desamparo diante do desconhecido e da transitoriedade da vida.
PALAVRAS-CHAVE: Sentido da vida. Filosofia. Psicanálise. Religiosidade.

ABSTRACT: In this pandemic moment in which a lethal and unknown virus puts our existence at risk, exposes our fragility and undermines our fantasy of immortality, we see more and more questions about the “Meaning of life”. As Philosophy and more specifically Psychoanalysis understand the “Meaning of life” and what is the relevance of Freudian thought and its implications for the understanding of culture are the objectives of this article. To accomplish this task, we analyze the main works of Freud whose central theme is the subject's relationship with society (culture) in which meanings and meanings are constructed and reproduced that point to a transcendental solution of a religious nature. Psychoanalytic criticism focuses on this dynamic in which the meaning of life is mixed with the fantasies of the subject, unprotected and infantilized in the relationship with the Other, leading him to place the question of "meaning of life" on the spiritual and religious level. The consequence would be the departure from reality, denial, as a way of appeasing painful feelings of helplessness in the face of the unknown, of the transience of life.
KEYWORDS: Sense of life. Philosophy. Psychoanalysis. Religiousness.

INTRODUÇÃO

O que é “Sentido da Vida”? Existe algum sentido na vida ou essa é apenas uma questão filosófica de menor importância? Como a Filosofia – de maneira geral – aborda esta questão, já que a busca de respostas para as questões centrais da existência é uma parte inerente ao pensar filosófico, e, mais especificamente, como a Psicanálise se coloca diante dessa temática do “sentido da vida” são os objetivos de nossa pesquisa. Ao analisar o tema a partir do ponto de vista psicanalítico outras questões se fazem presentes, a saber, a fusão da problemática do sentido da vida com questões espirituais e religiosas – pois a busca por um “sentido” é colocada em cena a partir da existência da dor, do sofrimento e da morte como parte inseparável da condição humana – e a oposição entre duas visões de mundo, a visão científica e a visão religiosa.
Abordaremos a questão do sentido da vida na psicanálise a partir de uma análise bibliográfica dos chamados “escritos socioculturais” de Freud, que são aqueles textos nos quais o pai da psicanálise se propõe a analisar o desenvolvimento da sociedade a partir de estruturas culturais (sociais) que estão em consonância com as estruturas psíquicas dos indivíduos e que são expressas, entre outras formas, na criação dos mitos e da religião, nas quais se coloca como questão ineludível o “sentido da vida”. Textos como Totem e tabu (1912-13), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930), Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933) e Moisés e o monoteísmo (1939) contemplam de forma abrangente o pensamento de Freud sobre a dinâmica indivíduo-sociedade e suas construções culturais atreladas aos aspectos mais primitivos do desenvolvimento humano, e, dentre essas construções, as míticas e religiosas se impõem como possibilidades de significação para o sujeito diante de sua insegurança e seu desamparo no universo.
Qual a importância de uma pesquisa que aborde o pensamento de Freud e o sentido da vida? Primeiramente porque são poucos os trabalhos que dão conta desse tema; a maioria dos escritos sobre a psicanálise abordam preferencialmente a clínica ou a psicopatologia e os textos de filosofia privilegiam os filósofos e escolas tradicionais; em segundo lugar, porquê permite o diálogo entre esses dois campos que permaneceram por muito tempo afastados nos meios acadêmicos, Filosofia e Psicanálise; e, finalmente, porquê facilitará ao pesquisador iniciante e pouco familiarizado com o pensamento freudiano o acesso aos principais textos socioculturais do pai da psicanálise de forma resumida.
Ao final do percurso veremos como Freud encadeia o sentido ou propósito da vida a uma visão de mundo (weltanschuung) que é construída ao longo do desenvolvimento do indivíduo e que está em profunda consonância com as vivências infantis e suas relações de amor e ódio com as figuras parentais, relações perpassadas pelo desejo inconsciente que se inserem na cultura sob múltiplas formas.

EXISTE UM SENTIDO?
Qual o sentido ou o propósito de nossa vida? O que viemos fazer aqui no mundo, no planeta terra? Qual o sentido ou finalidade de nossa existência? De onde viemos e para onde vamos ao término de nossa vida? São perguntas que os humanos se fazem desde os primórdios da história da humanidade e a busca por respostas levou a criação dos mitos, da religião e da Filosofia.
Não existe sociedade humana que não tenha procurado responder a tais questionamentos, no Ocidente e no Oriente, nos hemisférios Norte e Sul e em todos os continentes não há cultura em que os indivíduos não tenham refletido sobre sua existência no mundo, sua permanência e sua transitoriedade. Ainda hoje, em pleno século XXI, um vírus desconhecido dos cientistas e de alto poder de letalidade vem provocando uma onda de terror em que tais questionamentos mais uma vez voltam à tona: quando a morte bate à porta de maneira tão contundente e abrangente os humanos se perguntam mais uma vez pelo sentido da vida, pelo propósito da existência, tal qual os primeiros humanos quando eram joguetes das forças da natureza.
Ao longo da história da Filosofia os pensadores das mais diferentes escolas procuraram responder a esta questão do sentido, mesmo porque as respostas oferecidas pelo pensamento mítico-religioso não se mostraram eficazes e careciam de evidências, dependendo unicamente da fé, do acreditar por acreditar, e, por mais que os deuses oferecessem algum consolo – geralmente no pós-morte – eles não satisfaziam os anseios das mentes mais questionadoras. As respostas oferecidas pelos filósofos passam sempre por algo que dê sentido à nossa existência no plano material, na vida terrena, em oposição as explicações míticos-religiosas ou apesar delas, e apontam para o caminho da busca pela felicidade (Eudaimonia), de um “bem viver” a nossa curta passagem pelo planeta Terra apesar das dificuldades – a dor, o sofrimento e a morte – inerentes a condição humana.
Entre os primeiros filósofos a propor respostas sobre o quê poderia dar um sentido à nossa existência encontram-se os Epicuristas, cujo ensinamento pregado por Epicuro de Samos na Grécia durante o século IV AEC, afirma que o “prazer é o início e o fim de uma vida feliz” (Carta sobre a felicidade [a Meneceu]), sendo portanto aquilo que dá sentido a vida. Para o Estoicismo, fundado na Grécia no século III AEC, por Zenão de Cítio, o sentido da vida está “em não se ter muitas expectativas com relação ao mundo” (PONDÉ, 2019), controlar as paixões (o desejo) e aceitar o destino, isso seria sinônimo de sabedoria e só o homem sábio é feliz. O Ceticismo, surgido na Grécia no século II AEC, com Pirro de Elis, afirma a impossibilidade das certezas sobre o conhecimento, sobre a verdade e por extensão sobre o sentido da vida, e sua versão mais moderna, o Niilismo, lança questionamentos sobre a ausência de propósitos ou sentidos para a existência humana.
Existem muitas outras escolas de filosofia e inúmeras outras elucubrações sobre o propósito da vida e o “bem viver”, entretanto, as três citadas acima se aproximam mais da análise proposta por Freud ao examinar este problema: em primeiro lugar a questão prazer-desprazer como medida de sentido, como ele afirma em “O mal estar na civilização” (1930) que a “finalidade de vida” se funde com a questão da própria busca por felicidade; em segundo lugar (e em total consonância com a anterior), a tentativa de controlar os desejos como caminho para evitar a dor e o sofrimento; e em terceiro, a constatação de que não há sentido ou propósito e todas as formas propostas pelos humanos para dar conta dessa questão não passam de ilusões.
Em uma série de conferências proferidas entre 1915 e 1917 (partes dela só publicadas em 1933), Freud tenta responder a uma pergunta que era frequentemente levantada nos meios acadêmicos, pois havia uma curiosidade intelectual sobre se a psicanálise levava a uma certa “visão de mundo” (weltanschuung), e, caso afirmativo, qual seria tal visão. Para ele, “visão de mundo” está ligado intimamente a questão do “sentido da vida” já que “visão de mundo é uma construção intelectual que, a partir de uma hipótese geral, soluciona de forma unitária todos os problemas de nossa existência” (1933, pág.322). De imediato Freud responde que a psicanálise não é adequada para isso, que enquanto disciplina científica adota a “visão de mundo” da ciência sem desmerecer as demais visões advindas da Arte e da Filosofia, mas com ressalvas a visão fornecida pela Religião por ser anticientífica e alimentar a ilusão e o engano.
Das áreas de conhecimento citadas acima – a Arte, a Filosofia e a Religião – apenas a Religião é considerada por Freud como um inimigo sério. A arte não oferece perigo por ser geralmente benéfica e ter com a ilusão uma parceria inexorável e construtiva; a Filosofia por sua vez utiliza métodos semelhantes ao método científico em sua busca da verdade e não representa uma oposição à ciência. Entretanto, com a Religião tudo muda, pois suas explicações cosmológicas, sua proposta de bem viver e seus preceitos morais possuem a pretensão de verdades inquestionáveis – já que ditadas pelos deuses – e vão de encontro àquilo que a realidade manifesta, caracterizando-se como um sistema ilusório de crenças que remetem as primitivas situações de desamparo da infância.
Segundo Freud os sistemas religiosos possuem três funções: a primeira delas é responder as perguntas cruciais da humanidade sobre a nossa origem e o nosso destino, de onde viemos e para onde vamos, e, dessa forma ela cumpre um propósito semelhante ao da ciência quando tenta satisfazer “a ânsia de saber humana” (1933, pág.327). A segunda função é aliviar a angústia dos indivíduos diante do desamparo e das contingências da vida oferecendo consolo e acenando com a possibilidade de felicidade nesse mundo ou no além túmulo. E finalmente, a Religião exerce uma função moralizante a partir da instauração de normas, proibições e preceitos morais que devem ser seguidos como garantia para o recebimento do prêmio – a felicidade ou a salvação – a ser resgatado nesta ou em outra vida.
Pelo exposto acima se pode perceber que existe uma grande oposição entre uma “visão de mundo científica” e uma “visão de mundo religiosa”; para Freud “as exigências relativas a uma visão de mundo têm apenas uma base afetiva” e o papel da ciência é “distinguir cuidadosamente entre o saber e tudo que é ilusão, resultado dessa exigência afetiva” (1933,pág.324). E que exigência afetiva estaria por trás da visão de mundo religiosa se não aquela oriunda de nossa infância fruto de nosso desamparo enquanto espécie e indivíduos, frágeis e vulneráveis aos perigos da natureza, as doenças, a dor e a morte? Os sistemas religiosos visam cumprir um papel semelhante aos desempenhados pelas figuras parentais nos primeiros anos de vida: respondem as nossas perguntas inquietantes, oferecem consolo e conforto face aos sofrimentos e agruras da vida, e, por fim nos orientam para o caminho correto a ser trilhado; uma tríplice ação cuja base é notadamente relacional, psicológica e afetiva.
Malgrado o conforto ou consolo oferecido pelos sistemas religiosos para algumas pessoas face às dificuldades e possibilidades de sofrimento a que estamos constantemente submetidos em nossa relação com a natureza e  com os outros, fica sempre a questão de saber sobre a origem desse mecanismo e sua real eficácia como promotora de bem estar. No livro “O mal-estar na civilização” (1930), logo no início, Freud questiona a ideia de religiosidade de seu amigo Romain Rolland quando este a vincula a um certo sentimento de eternidade ou “sentimento oceânico” – em suas palavras – que seria mais ou menos um sentimento de pertencimento ao Todo. Para Freud, tal “sentimento oceânico” está ao lado das outras manifestações psíquicas primitivas da infância – o desamparo infantil e a nostalgia do pai – que estão na base do desenvolvimento das ideias religiosas do sujeito. Ainda nesse texto, ele afirma que a questão do sentido da vida “jamais encontrou resposta satisfatória, e talvez não a tenha sequer” (1930, pág.29), e que apenas a religião se atreve a responder a essa questão, mas, de maneira insatisfatória para aquelas pessoas que não abrem mão do pensamento racional.
Aprofundando a discussão da religiosidade a partir do pensamento psicanalítico, podemos apontar a presença do antigo e sempre presente embate entre as duas forças antagônicas do psiquismo: o Princípio de Prazer versus o Princípio de Realidade. Se como vimos, a noção de “sentido de vida” caminha de braços dados com a busca da felicidade, seu percurso passará inevitavelmente  pela evitação-ausência de dor ou desprazer e/ou a vivência de prazeres intensos, em suma, o reinado do Princípio de Prazer, que por sua vez se mostrará problemático na medida em que possa ameaçar provocar desprazer no choque com o Princípio de Realidade; resta ao indivíduo a difícil tarefa de tentar equilibrar esse jogo de forças que muitas vezes só se apazígua numa formação de compromisso de natureza neurótica. O projeto de “ser feliz” proposto pelo Princípio de Prazer é irrealizável, o que não nos impede de continuar a tentar obter o máximo possível de prazer e evitar o desprazer, entretanto, como a felicidade “constitui um problema da economia libidinal do indivíduo” (1930, pág.40), mais adiante cada sujeito terá que descobrir a sua forma particular de ser feliz, que dependerá basicamente de suas expectativas com relação a quantidade de satisfação advinda do mundo exterior, de sua independência em relação a essas gratificações da realidade e da quantidade de força disponível para mudar a realidade conforme seus desejos.
Dissemos acima que uma das funções da religião seria aplacar a angústia existencial dos indivíduos diante do desamparo, da dor e da morte, será que ela consegue atingir este objetivo? E caso consiga, como o faz? Para respondermos as questões propostas necessitamos compreender antes o processo de formação do pensamento religioso na história da humanidade, da primitiva religião totêmica até os nossos dias. Com o auxílio da Antropologia, Freud em seu texto clássico de 1912, “Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos” defende que a origem da religião organizada descende dos rituais totêmicos observados em várias tribos espalhadas ao longo da Terra; fenômeno repetitivo em que os grupos prestam adoração a um animal símbolo, o ancestral comum do clã, tido como o “pai” daquelas pessoas e que uma vez no ano é oferecido em banquete para o grupo, onde todos podem comer a carne e beber o sangue desse ancestral comum. Para Freud esse ritual – o banquete totêmico – era uma reedição de um acontecimento mítico chamado por ele de “parricídio do pai da horda primeva”, uma hipótese que narra o assassinato do pai da horda pelos filhos homens excluídos do grupo por esse pai que tinha para si o controle sobre as mulheres do bando; após a morte do tirano, seus filhos fundam o costume da exogamia (para que a história não se repetisse) e promovem o pai assassinado à divindade, fundando desse modo a religião organizada, independente da adoração da natureza. Nesse livro Freud traça um paralelo entre religião e neurose obsessiva, mas sobretudo, o que é mais importante e será retomado em seus escritos posteriores (O futuro de uma ilusão, 1927 e Moisés e o monoteísmo, 1939) a vinculação dos fenômenos religiosos com o psiquismo infantil repleto de fantasias, de magia, de deuses, de demônios e de fantasmas; e, se ela ainda assim consegue trazer algum conforto e diminuir a angústia existencial dos sujeitos no mundo de hoje, isso pode ser creditado justamente à irracionalidade de seus conteúdos, à força consoladora dessa ilusão.
Em sua obra “O futuro de uma ilusão (1927)” dedicada exclusivamente à investigação da religião e da religiosidade enquanto fenômeno ilusório, Freud nos esclarece que toda crença em cuja motivação prevalece a realização de desejos sem levar em consideração sua correlação com a realidade merece ser chamada de ilusão. E mais adiante ele afirma que as doutrinas religiosas “todas elas são ilusões, são indemonstráveis, ninguém pode ser forçado a tomá-las por verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo o que laboriosamente viemos a saber sobre a realidade do mundo, que podem – levando-se devidamente em conta as diferenças psicológicas – ser comparadas aos delírios” (1927, pág.268). Freud também reconhece o trabalho benéfico prestado pela religião à cultura humana quando contribuiu para “domar os instintos associais, embora não o bastante” (1927, pág.276), mas considera primordial sublinhar o fato de que mesmo em seu apogeu, quando a religião era a voz de Deus reconhecida por quase todo o mundo, ainda assim não fez com que os humanos fossem mais felizes e mais morais do que hoje,  e aponta a evidência – tantas vezes evitada – da hipocrisia reinante nos meios religiosos com seus sacerdotes e suas práticas perversas.
A religião evoluiu ao longo do tempo, do animismo passando pelo totemismo e chegando finalmente nos deuses antropomórficos da antiguidade clássica, mas não perdeu suas características centrais, apenas adaptou-as aos novos contextos. Somos herdeiros de uma tradição que parecia ter sido o último patamar de desenvolvimento religioso: o culto monoteísta em suas três versões mais marcantes da atualidade, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. A história continua com o mesmo cenário, um deus (Pai) que promete cuidar de seus filhos se esses cumprirem sua parte no acordo, que oferece respostas para o enigma da vida e da morte, e, que exige o cumprimento de leis que asseguram o bom convívio entre humanos. Para Freud (1939) o grande mérito de Moisés – um egípcio – foi ter “recriado” o monoteísmo e ter trazido a novidade de um deus que escolhe um povo e com ele faz um pacto. O Cristianismo que surge inicialmente como uma seita no seio do Judaísmo faz mais ainda para aproximar esse deus de seu povo, o próprio deus num ato de amor vem habitar a terra como um ser humano e se oferece em sacrifício para a remissão dos pecados daquele que nele crer, e como ato memorial de seu sacrifício é feito uma espécie de banquete totêmico em que a carne e o sangue do deus é o alimento que realiza a comunhão entre céu e terra, mortalidade e imortalidade na vida dos crentes. E seguindo nesse propósito de oferecer consolo e conforto nesse vale de lágrimas que é a vida, o Catolicismo Romano trouxe de volta a família inteira para dentro do culto – uma reedição mal disfarçada do velho politeísmo pagão – um deus Pai, um deus Filho, uma deusa Mãe (a mãe de deus filho) e uma legião de madrinhas e padrinhos  (anjos, santos e santas) para cuidar especificamente de determinadas áreas do sofrimento humano, e trouxe também em seu bojo uma legião de demônios, como se não bastasse os que nos habita desde sempre sob a forma de nossas pulsões eróticas e destrutivas. Para qualquer lado que olharmos veremos sempre essa marca do humano que o fenômeno religioso tenta dar respostas: a tremenda angústia provocada pelo desamparo infantil, o terror e o medo diante do desconhecido que nos inunda de dentro de nosso organismo e de fora pelo mundo real físico e relacional.

Entretanto, apesar do caráter ilusório, da superstição que promove e alimenta o engano e da narcose provocada nos fiéis em sua relação com a opressão política que usa a religião como justificativa para atos de terrorismo, nem tudo no que tange a religião é negativo. Para o filósofo romeno e cientista da religião Mircea Eliade (2001) o fenômeno religioso não só oferece conforto diante do inexplicável como confere sentido à vida como um todo: todas as atividades humanas são significadas a partir de sua sacralização, desse modo, a natureza, a concepção, o nascimento, o trabalho, a sexualidade, a alimentação e a morte ficam plenas de sentido no universo do homo religiosus, pois “o comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo” (2001, pág.88).


Para Eliade só existem duas formas ou modalidades de ser no Mundo: o modo Sagrado e o modo Profano – seriam estas as duas situações existenciais “assumidas “ pelos seres humanos “ao longo da sua história” (2001, pág.20). Para ele, existe grandeza em ambas as posições, tanto o homo religiosus – que acredita na existência de uma realidade absoluta que transcende este mundo – quanto o Homem a-religioso – aquele que rejeita a transcendência e se reconhece como “o único sujeito e agente da História” (2001, pág.165) para quem o sagrado funciona como obstáculo a sua liberdade – em ambos está presente a marca da religiosidade, seja como afirmação ou negação; e, apesar da dessacralização do mundo religioso realizado por uma das partes, não conseguiu evitar a sacralização do profano como se pode observar na fé quase religiosa com que as pessoas defendem certas ideologias políticas, filosóficas ou crenças seculares. Em suma, o indivíduo a-religioso não está livre dos comportamentos religiosos e das mitologias, nem mesmo a Psicanálise, que segundo Eliade mantém ainda o padrão iniciático típico das religiões, trabalham com conteúdos e estruturas inconscientes que se assemelham a figuras mitológicas e apresenta uma aura religiosa em seu aspecto institucional.

CONCLUSÃO
Diante do que expusemos acima chegamos a conclusão que a Psicanálise não se coloca como uma “visão de mundo” a ser seguida e não propõe ou defende a existência de um “sentido de vida”. A visão de mundo que a psicanálise adota é a visão científica – em oposição à visão religiosa – seu lema é o autoconhecimento e sua missão a de iluminar recônditos da alma humana ignorados por tantos séculos, a saber, o psiquismo inconsciente.
Que sentidos haveria na vida além daqueles que o sujeito constrói a cada dia? O que o pai da psicanálise nos ensina a respeito de propósitos ou sentido de vida pode ser resumido como um alerta contra a ilusão e a superstição, como se ele nos dissesse: “conhece-te a ti mesmo e aceita as tuas limitações; o tempo da infância e do pensamento mágico já passou, teus pais não podem mais te salvar dos perigos, das dores e da morte – aliás, nunca puderam – e, tampouco seus substitutos, os deuses e deusas, pois eles fazem parte apenas de teus sonhos”. Quanto a felicidade tão almejada, também pode esquecer, não há garantias de estados duradouros de felicidade, só existem momentos felizes, uns mais outros menos, e, nem que você consiga ler todos os livros de autoajuda que prometem uma vida feliz – e olha que não são poucos – ainda assim você não conseguirá. A civilização se construiu sobre a repressão dos instintos mas não os aboliu; fervilhando dentro de cada um de nós ainda há desejos (libidinais e destrutivos) que precisam ser calados (recalcados e reprimidos) para se viver em cultura, paga-se um preço por essa dádiva da vida coletiva e esse preço é justamente um constante mal-estar na vida cotidiana, incompatível com o projeto de felicidade vendido nas livrarias, farmácias, bares, bocas-de-fumo e palestras motivacionais.
Se não há sentido ou propósito para a vida e a Religião possui caráter ilusório e infantilizado dentro do pensamento freudiano, tampouco há qualquer crítica depreciativa àqueles que acreditam no contrário, Freud teve entre seus grandes amigos e um dos primeiros analistas leigo (não médico) um pastor protestante, o luterano Oskar Pfister, além do mais existem psicanalistas com credo religioso, alguns bem famosos como a católica francesa Françoise Dolto, co-fundadora da Sociedade Francesa de Psicanálise, uma dissidência da IPA na década de 1950, formada por um grupo de cerca de quarenta psicanalistas entre os quais Donald Winnicott e Jacques Lacan, que sendo ateu, se dizia “filho de padre” por ter sido educado pelos irmãos Maristas.

A vida não tem sentido, tem valor, conferido a ela por cada um de nós, seres humanos, de acordo com a trama de nosso romance familiar e enredada nas vicissitudes de nosso desenvolvimento numa dada cultura, principalmente daqueles primeiros anos de nossa vida.É isso que Freud nos ensina, a deixar o mundo fantástico da infância no qual sua majestade o bebê estava confortavelmente instalado em meio a satisfações alucinatórias, sair do princípio do prazer e adentrar de vez no princípio de realidade, sabendo que a vida não tem sentido mas nada impede que eu repita, parodiando o poeta Gonzaguinha: “é bonita, é bonita e é bonita”, apesar de tanta feiura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 5ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). 2ª reimpressão. Tradução e apresentação: Álvaro Lorencini. Enzo del Carratore. São Paulo: Ed. Unesp, 2002.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu (1912-13). ). Obras completas, vol. 11. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
______ . O futuro de uma ilusão (1927). Obras completas, vol. 17. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
______ . O mal-estar na civilização (1930). Obras completas, vol. 18. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
______ . Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933). Obras completas, vol. 18. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
______ . Moisés e o monoteísmo (1939). ). Obras completas, vol. 19. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2018.
GONZAGA JÚNIOR, Luiz. O que é o que é? LP: Caminhos do coração. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1982.
PONDÉ, Luís.Felipe. Propósito de vida e trabalho. In: Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: uso pessoal e profissional. Porto Alegre, PUCRS-ONLINE, 2019.

Antonio Carlos Ferreira Lima, Psicólogo e Doutor em Literatura, docente da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, UNCISAL. Endereço para correspondência: Rua Jorge de Lima, 113, Trapiche da Barra, 57010-300. Endereço eletrônico: fantonio8636@gmail.com . Maceió, junho de 2020.

domingo, 14 de junho de 2020

Milan Kundera - para reflexão.

"Então acham que o passado, porque já foi, está acabado e imutável? Ah não, sua vestimenta é feita de um tafetá furta-cor, e cada vez que nos voltamos para ele podemos vê-lo com outras cores". 
A vida está em outro lugar. Ed. Companhia das Letras, 2012.