1. Uma aluna de Teologia,
de uma turma querida, pede-me uma "resposta" - sim, foi uma
encomenda, que engraçado! - a uma imagem do facebook, condenando as imagens de
Maria, pelo fato de não estarem na Bíblia e, pior, de textos bíblicos proibirem
imagens.
2. Não é uma tarefa nem
fácil nem rápida, mas tentarei, em poucos parágrafos, fazer um quadro geral da
presença de Maria e de imagens, e também imagens de Maria, no Cristianismo.
3. Bem, antes é preciso
saber que os israelitas e os judeus tinham imagens. Durante toda a sua
história, até o século V a.C. tinham imagens - e não de santos, mas de deuses,
porque eram politeístas. Há uma corrente acadêmica que ainda postula a hipótese
de um braço pré-monoteísta, profético, desde o século IX a.C. (não apostaria
nisso), mas, seja como for, na prática, Israel e Judá eram politeístas icônicos
- além de adorarem vários deuses, adoravam-nos por meio de imagens.
4. Na virada do século VI
para o V, depois que os sacerdotes que retornaram da Babilônia assumiram o
poder, tudo mudou. E mudou tanto, que quase nada da religião judaica depois
disso foi da mesma forma que fora antes. Antes, os judeus eram politeístas;
depois, monolátricos (henoteístas); antes, adoravam imagens; depois, não;
antes, tinham vários altares e templos; depois, só um (em Judá - no Egito,
havia outro); antes, tinham profetas; depois, não; antes, tinham profetisas e
sacerdotisas, depois, não; antes, Deus fazia bem e mal; depois, só bem. Mudou
tudo.
5. Escreveu-se nesse
período o Pentateuco. Todas as Leis, na prática, datam dessa época - século V
em diante. Há coisas antigas, mas as antigas são justamente aquelas que
conspiram contra essa pretensa vida monoteísta e anicônica: Nm 21, por exemplo,
diz que Yahweh manda Moisés fazer uma imagem de serpente, e que o povo olhasse
para ela, para se curar... Essa imagem ficou por anos no Templo, e os judeus
ofereciam incenso a ela. Minha dissertação de mestrado foi sobre Nehushtan, a
serpente de bronze - e eu já devia ter publicado.
6. Bem, até o Novo
Testamento, nada mudou significativamente. E acontece Jesus. Surge, de dentro
do judaísmo, e com suas características, a Igreja. Se ela tivesse permanecido
judaica, nada teria mudado. Mas ela abriu as portas para os gregos, depois,
para todos. Começa uma longa fase de negociações.
7. A Igreja de Coríntio,
por exemplo - como era uma igreja situada em cidade portuária, gente de todos
os lugares transitavam por ali. Foi justamente ali que uma prática não-judaica
ingressou na Igreja - a glossolalia, a "fala em língua estranha". Foi
um fenômeno não-israelita que a Igreja adotou. Paulo tolerou o fenômeno e
tentou dar um tratamento organizado a ele - que houvesse intérprete.
8. A Igreja desenvolveu-se,
assim, negociando. O Natal, por exemplo, em 25 de Dezembro, é a aplicação à
data da Festa ao Deus Sol. Quando a Igreja se tornou imperial - de Roma, o
Império - a festa do nascimento de Jesus passou a ser comemorada no dia da
Festa ao Sol Invictus - Jesus não nasceu em 25 de dezembro - isso é
apenas "sincretismo" formal.
9. Cada vez mais as pessoas
ingressavam na igreja, e o uso de imagens passou a fazer parte das tradições,
porque todos os povos que ingressavam no Cristianismo usavam culto de imagens -
todas. Inclusive, quando Mohamed (Maomé) fará a sua revolução religiosa, todo
seu povo - todo - usava imagens ainda. Era absolutamente normal e comum.
10. O que a igreja fez foi
dar ao uso delas um tratamento diferenciado: não era "adoração", mas veneração
- os santos que eles representavam, sempre relacionados a supostos cristãos
mortos, não eram adorados, mas venerados. Depois da Reforma, a Contra-Reforma
católica ratificou a veneração das imagens, contra Lutero, e isso então se
pratica desde os primeiros séculos do Cristianismo.
11. No caso de Maria, a
Igreja cristã operou de forma semelhante. Toda a bacia do Mediterrâneo - toda -
era marcada pelo culto às deusas. No norte da África, Ísis; na Europa e na Ásia
Menor, Minerva/Diana no Oriente Próximo, Ishtar. O Cristianismo não tinha
deusas. A pressão era enorme.
12. Pois bem, em Nicéia e
nos dois Concílios posteriores, Jesus, que nascera de Maria, foi considerado
Deus. Ora, o raciocínio que se fez, sob a pressão gigantesca das populações,
que apelavam para uma deusa, era: se Maria pariu Jesus como homem, então ela é
humana, mas, se Jesus era Deus, então Maria pariu um Deus, pariu Deus, logo,
ela é Mãe de Deus.
13. Não foi de um dia para
o outro, mas em 431, no Concílio de Éfeso, Maria foi declarada pela Igreja como
Theotokos, Mãe de Deus.
14. Preste-se atenção num
detalhe: não foi a Igreja católica. A Igreja católica só passou a existir no
século XVI, como reação a Lutero. Até o século XVI, só se pode falar da Igreja
cristã. No século XVI, Lutero inventa moda de fazer a Reforma e separa-se da
Igreja, alegando ser ele representante legítimo da "verdade" do NT. A
Igreja, todavia, diante da insistência dos reformadores, convoca o Concílio de
Trento e ratifica suas posições históricas. E esse braço histórico do
Cristianismo se ratifica como Igreja Católica Apostólica Romana.
15. Assim, a Igreja cristã
usa imagens e venera Maria há 1.600 anos. Há 500, uma parcela, os protestantes
e seus herdeiros, os evangélicos, deixou de usar imagens e de venerar Maria.
16. Eu entendo que crentes
"zelosos" se sintam pressionados à aplicação direta de textos
antigos, do AT. De fato, a Lei, a Torá, diz que não se pode usar imagens.
Também manda matar o filho desobediente. Eu entenderia alguém que, se dizendo
fiel observador da Lei, se recusasse a usar imagens ou considerasse que quem as
usa esteja errado, mas essa pessoa deveria cumprir, então, toda a Lei -
inclusive a de matar o filho desobediente.
17. A prática de usar a
Bíblia como "prova" de coisas certas ou erradas é constrangedora,
porque a mesma pessoa que usa a Bíblia contra os outros, não a usa contra si.
Assim, trata-se apenas de compreender a História da Igreja. Se você é católico
e gosta da veneração dos santos e do uso das imagens, fique com sua consciência
tranquila. Se você é evangélico e concorda com Lutero, que se não deve usá-las,
não as use, e fique com sua consciência tranquila. Mas deixe de lado essa mania
de usar a Bíblia contra os outros... Porque a mesma Bíblia que você usa contra
os outros, se volta contra você com a força da acusação de uma série de ordens
que ela contém e que, com razão, você não cumpre. Mas, se você se dá o direito
de não cumprir tudo o que a Bíblia diz, por que acha que tem o direito de
exigir de outros cumprirem o que você acha correto?
18. O homem não foi feito
para a Bíblia.
19. É a Bíblia que foi
feita para o homem.
20. Ame as pessoas e terá
cumprido a Lei.
21. O resto é pecado - até
em nome de Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário