FREUD E O SENTIDO DA VIDA
Freud and
the meaning of life
Antonio
Lima
Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
RESUMO: Nesse momento de pandemia em que um vírus letal e
desconhecido põe em risco nossa existência, desnuda nossa fragilidade e solapa
nossa fantasia de imortalidade, vê-se cada vez mais questionamentos sobre o
“Sentido da vida”. Como a Filosofia e mais especificamente a Psicanálise
compreendem o “Sentido da vida” e qual a relevância do pensamento freudiano e
de suas implicações para a compreensão da cultura são os objetivos deste
artigo. Para realizar tal tarefa analisamos as principais obras de Freud cuja
temática central é a relação do sujeito com a sociedade (cultura) na qual se
constroem e se reproduzem significações e sentidos que apontam para uma solução
transcendental de natureza religiosa. A crítica psicanalítica incide nessa
dinâmica em que a noção de “sentido da vida” se mistura as fantasias do
sujeito, desprotegido e infantilizado na relação com o Outro, levando-o a
colocar a questão do “sentido da vida” no plano espiritual e religioso cuja
consequência seria o afastamento da realidade, denegação, como forma de aplacar
os sentimentos dolorosos de desamparo diante do desconhecido e da
transitoriedade da vida.
PALAVRAS-CHAVE: Sentido da vida. Filosofia.
Psicanálise. Religiosidade.
ABSTRACT: In this pandemic moment in which a lethal and
unknown virus puts our existence at risk, exposes our fragility and undermines
our fantasy of immortality, we see more and more questions about the “Meaning
of life”. As Philosophy and more specifically Psychoanalysis understand the
“Meaning of life” and what is the relevance of Freudian thought and its
implications for the understanding of culture are the objectives of this
article. To accomplish this task, we analyze the main works of Freud whose
central theme is the subject's relationship with society (culture) in which meanings
and meanings are constructed and reproduced that point to a transcendental
solution of a religious nature. Psychoanalytic criticism focuses on this
dynamic in which the meaning of life is mixed with the fantasies of the
subject, unprotected and infantilized in the relationship with the Other,
leading him to place the question of "meaning of life" on the
spiritual and religious level. The consequence would be the departure from
reality, denial, as a way of appeasing painful feelings of helplessness in the
face of the unknown, of the transience of life.
KEYWORDS: Sense of life. Philosophy.
Psychoanalysis. Religiousness.
INTRODUÇÃO
O que é “Sentido da Vida”? Existe algum
sentido na vida ou essa é apenas uma questão filosófica de menor importância?
Como a Filosofia – de maneira geral – aborda esta questão, já que a busca de
respostas para as questões centrais da existência é uma parte inerente ao
pensar filosófico, e, mais especificamente, como a Psicanálise se coloca diante
dessa temática do “sentido da vida” são os objetivos de nossa pesquisa. Ao
analisar o tema a partir do ponto de vista psicanalítico outras questões se
fazem presentes, a saber, a fusão da problemática do sentido da vida com
questões espirituais e religiosas – pois a busca por um “sentido” é colocada em
cena a partir da existência da dor, do sofrimento e da morte como parte
inseparável da condição humana – e a oposição entre duas visões de mundo, a
visão científica e a visão religiosa.
Abordaremos a questão do sentido da vida na
psicanálise a partir de uma análise bibliográfica dos chamados “escritos
socioculturais” de Freud, que são aqueles textos nos quais o pai da psicanálise
se propõe a analisar o desenvolvimento da sociedade a partir de estruturas
culturais (sociais) que estão em consonância com as estruturas psíquicas dos
indivíduos e que são expressas, entre outras formas, na criação dos mitos e da
religião, nas quais se coloca como questão ineludível o “sentido da vida”.
Textos como Totem e tabu (1912-13), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar
na civilização (1930), Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933) e
Moisés e o monoteísmo (1939) contemplam de forma abrangente o pensamento de
Freud sobre a dinâmica indivíduo-sociedade e suas construções culturais
atreladas aos aspectos mais primitivos do desenvolvimento humano, e, dentre
essas construções, as míticas e religiosas se impõem como possibilidades de
significação para o sujeito diante de sua insegurança e seu desamparo no
universo.
Qual a importância de uma pesquisa que
aborde o pensamento de Freud e o sentido da vida? Primeiramente porque são
poucos os trabalhos que dão conta desse tema; a maioria dos escritos sobre a
psicanálise abordam preferencialmente a clínica ou a psicopatologia e os textos
de filosofia privilegiam os filósofos e escolas tradicionais; em segundo lugar,
porquê permite o diálogo entre esses dois campos que permaneceram por muito
tempo afastados nos meios acadêmicos, Filosofia e Psicanálise; e, finalmente,
porquê facilitará ao pesquisador iniciante e pouco familiarizado com o
pensamento freudiano o acesso aos principais textos socioculturais do pai da
psicanálise de forma resumida.
Ao final do percurso veremos como Freud
encadeia o sentido ou propósito da vida a uma visão de mundo (weltanschuung)
que é construída ao longo do desenvolvimento do indivíduo e que está em
profunda consonância com as vivências infantis e suas relações de amor e ódio
com as figuras parentais, relações perpassadas pelo desejo inconsciente que se
inserem na cultura sob múltiplas formas.
EXISTE UM SENTIDO?
Qual o sentido ou o propósito de nossa vida? O que
viemos fazer aqui no mundo, no planeta terra? Qual o sentido ou finalidade de
nossa existência? De onde viemos e para onde vamos ao término de nossa vida?
São perguntas que os humanos se fazem desde os primórdios da história da
humanidade e a busca por respostas levou a criação dos mitos, da religião e da
Filosofia.
Não existe sociedade humana que não tenha procurado
responder a tais questionamentos, no Ocidente e no Oriente, nos hemisférios
Norte e Sul e em todos os continentes não há cultura em que os indivíduos não
tenham refletido sobre sua existência no mundo, sua permanência e sua
transitoriedade. Ainda hoje, em pleno século XXI, um vírus desconhecido dos cientistas
e de alto poder de letalidade vem provocando uma onda de terror em que tais
questionamentos mais uma vez voltam à tona: quando a morte bate à porta de
maneira tão contundente e abrangente os humanos se perguntam mais uma vez pelo
sentido da vida, pelo propósito da existência, tal qual os primeiros humanos
quando eram joguetes das forças da natureza.
Ao longo da história da Filosofia os pensadores das
mais diferentes escolas procuraram responder a esta questão do sentido, mesmo
porque as respostas oferecidas pelo pensamento mítico-religioso não se
mostraram eficazes e careciam de evidências, dependendo unicamente da fé, do
acreditar por acreditar, e, por mais que os deuses oferecessem algum consolo –
geralmente no pós-morte – eles não satisfaziam os anseios das mentes mais
questionadoras. As respostas oferecidas pelos filósofos passam sempre por algo
que dê sentido à nossa existência no plano material, na vida terrena, em
oposição as explicações míticos-religiosas ou apesar delas, e apontam para o caminho
da busca pela felicidade (Eudaimonia), de um “bem viver” a nossa curta passagem
pelo planeta Terra apesar das dificuldades – a dor, o sofrimento e a morte –
inerentes a condição humana.
Entre os primeiros filósofos a propor respostas
sobre o quê poderia dar um sentido à nossa existência encontram-se os
Epicuristas, cujo ensinamento pregado por Epicuro de Samos na Grécia durante o
século IV AEC, afirma que o “prazer é o início e o fim de uma vida feliz”
(Carta sobre a felicidade [a Meneceu]), sendo portanto aquilo que dá sentido a
vida. Para o Estoicismo, fundado na Grécia no século III AEC, por Zenão de
Cítio, o sentido da vida está “em não se ter muitas expectativas com relação
ao mundo” (PONDÉ, 2019), controlar as paixões (o desejo) e aceitar o destino,
isso seria sinônimo de sabedoria e só o homem sábio é feliz. O Ceticismo,
surgido na Grécia no século II AEC, com Pirro de Elis, afirma a impossibilidade
das certezas sobre o conhecimento, sobre a verdade e por extensão sobre o
sentido da vida, e sua versão mais moderna, o Niilismo, lança questionamentos
sobre a ausência de propósitos ou sentidos para a existência humana.
Existem muitas outras escolas de filosofia e
inúmeras outras elucubrações sobre o propósito da vida e o “bem viver”,
entretanto, as três citadas acima se aproximam mais da análise proposta por
Freud ao examinar este problema: em primeiro lugar a questão prazer-desprazer
como medida de sentido, como ele afirma em “O mal estar na civilização” (1930)
que a “finalidade de vida” se funde com a questão da própria busca por
felicidade; em segundo lugar (e em total consonância com a anterior), a
tentativa de controlar os desejos como caminho para evitar a dor e o
sofrimento; e em terceiro, a constatação de que não há sentido ou propósito e todas
as formas propostas pelos humanos para dar conta dessa questão não passam de
ilusões.
Em uma série de conferências proferidas entre 1915
e 1917 (partes dela só publicadas em 1933), Freud tenta responder a uma
pergunta que era frequentemente levantada nos meios acadêmicos, pois havia uma
curiosidade intelectual sobre se a psicanálise levava a uma certa “visão de
mundo” (weltanschuung), e, caso afirmativo, qual seria tal visão. Para ele,
“visão de mundo” está ligado intimamente a questão do “sentido da vida” já que “visão
de mundo é uma construção intelectual que, a partir de uma hipótese geral,
soluciona de forma unitária todos os problemas de nossa existência” (1933,
pág.322). De imediato Freud responde que a psicanálise não é adequada para
isso, que enquanto disciplina científica adota a “visão de mundo” da ciência
sem desmerecer as demais visões advindas da Arte e da Filosofia, mas com
ressalvas a visão fornecida pela Religião por ser anticientífica e alimentar a
ilusão e o engano.
Das áreas de conhecimento citadas acima – a Arte, a
Filosofia e a Religião – apenas a Religião é considerada por Freud como um
inimigo sério. A arte não oferece perigo por ser geralmente benéfica e ter com
a ilusão uma parceria inexorável e construtiva; a Filosofia por sua vez utiliza
métodos semelhantes ao método científico em sua busca da verdade e não
representa uma oposição à ciência. Entretanto, com a Religião tudo muda, pois
suas explicações cosmológicas, sua proposta de bem viver e seus preceitos
morais possuem a pretensão de verdades inquestionáveis – já que ditadas pelos
deuses – e vão de encontro àquilo que a realidade manifesta, caracterizando-se
como um sistema ilusório de crenças que remetem as primitivas situações de
desamparo da infância.
Segundo Freud os sistemas religiosos possuem três
funções: a primeira delas é responder as perguntas cruciais da humanidade sobre
a nossa origem e o nosso destino, de onde viemos e para onde vamos, e, dessa
forma ela cumpre um propósito semelhante ao da ciência quando tenta satisfazer “a
ânsia de saber humana” (1933, pág.327). A segunda função é aliviar a
angústia dos indivíduos diante do desamparo e das contingências da vida
oferecendo consolo e acenando com a possibilidade de felicidade nesse mundo ou
no além túmulo. E finalmente, a Religião exerce uma função moralizante a partir
da instauração de normas, proibições e preceitos morais que devem ser seguidos
como garantia para o recebimento do prêmio – a felicidade ou a salvação – a ser
resgatado nesta ou em outra vida.
Pelo exposto acima se pode perceber que existe uma
grande oposição entre uma “visão de mundo científica” e uma “visão de mundo
religiosa”; para Freud “as exigências relativas a uma visão de mundo têm
apenas uma base afetiva” e o papel da ciência é “distinguir cuidadosamente
entre o saber e tudo que é ilusão, resultado dessa exigência afetiva”
(1933,pág.324). E que exigência afetiva estaria por trás da visão de mundo
religiosa se não aquela oriunda de nossa infância fruto de nosso desamparo
enquanto espécie e indivíduos, frágeis e vulneráveis aos perigos da natureza,
as doenças, a dor e a morte? Os sistemas religiosos visam cumprir um papel
semelhante aos desempenhados pelas figuras parentais nos primeiros anos de
vida: respondem as nossas perguntas inquietantes, oferecem consolo e conforto
face aos sofrimentos e agruras da vida, e, por fim nos orientam para o caminho
correto a ser trilhado; uma tríplice ação cuja base é notadamente relacional,
psicológica e afetiva.
Malgrado o conforto ou consolo oferecido pelos sistemas
religiosos para algumas pessoas face às dificuldades e possibilidades de
sofrimento a que estamos constantemente submetidos em nossa relação com a natureza
e com os outros, fica sempre a questão
de saber sobre a origem desse mecanismo e sua real eficácia como promotora de
bem estar. No livro “O mal-estar na civilização” (1930), logo no início, Freud
questiona a ideia de religiosidade de seu amigo Romain Rolland quando este a
vincula a um certo sentimento de eternidade ou “sentimento oceânico” – em suas
palavras – que seria mais ou menos um sentimento de pertencimento ao Todo. Para
Freud, tal “sentimento oceânico” está ao lado das outras manifestações
psíquicas primitivas da infância – o desamparo infantil e a nostalgia do pai –
que estão na base do desenvolvimento das ideias religiosas do sujeito. Ainda
nesse texto, ele afirma que a questão do sentido da vida “jamais encontrou
resposta satisfatória, e talvez não a tenha sequer” (1930, pág.29), e que
apenas a religião se atreve a responder a essa questão, mas, de maneira
insatisfatória para aquelas pessoas que não abrem mão do pensamento racional.
Aprofundando a discussão da religiosidade a partir
do pensamento psicanalítico, podemos apontar a presença do antigo e sempre
presente embate entre as duas forças antagônicas do psiquismo: o Princípio de
Prazer versus o Princípio de Realidade. Se como vimos, a noção de “sentido de
vida” caminha de braços dados com a busca da felicidade, seu percurso passará
inevitavelmente pela evitação-ausência
de dor ou desprazer e/ou a vivência de prazeres intensos, em suma, o reinado do
Princípio de Prazer, que por sua vez se mostrará problemático na medida em que
possa ameaçar provocar desprazer no choque com o Princípio de Realidade; resta
ao indivíduo a difícil tarefa de tentar equilibrar esse jogo de forças que
muitas vezes só se apazígua numa formação de compromisso de natureza neurótica.
O projeto de “ser feliz” proposto pelo Princípio de Prazer é irrealizável, o
que não nos impede de continuar a tentar obter o máximo possível de prazer e
evitar o desprazer, entretanto, como a felicidade “constitui um problema da
economia libidinal do indivíduo” (1930, pág.40), mais adiante cada sujeito
terá que descobrir a sua forma particular de ser feliz, que dependerá
basicamente de suas expectativas com relação a quantidade de satisfação advinda
do mundo exterior, de sua independência em relação a essas gratificações da
realidade e da quantidade de força disponível para mudar a realidade conforme
seus desejos.
Dissemos acima que uma das funções da religião
seria aplacar a angústia existencial dos indivíduos diante do desamparo, da dor
e da morte, será que ela consegue atingir este objetivo? E caso consiga, como o
faz? Para respondermos as questões propostas necessitamos compreender antes o
processo de formação do pensamento religioso na história da humanidade, da
primitiva religião totêmica até os nossos dias. Com o auxílio da Antropologia,
Freud em seu texto clássico de 1912, “Totem e tabu: algumas concordâncias entre
a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos” defende que a origem da
religião organizada descende dos rituais totêmicos observados em várias tribos
espalhadas ao longo da Terra; fenômeno repetitivo em que os grupos prestam
adoração a um animal símbolo, o ancestral comum do clã, tido como o “pai”
daquelas pessoas e que uma vez no ano é oferecido em banquete para o grupo,
onde todos podem comer a carne e beber o sangue desse ancestral comum. Para
Freud esse ritual – o banquete totêmico – era uma reedição de um acontecimento
mítico chamado por ele de “parricídio do pai da horda primeva”, uma hipótese
que narra o assassinato do pai da horda pelos filhos homens excluídos do grupo
por esse pai que tinha para si o controle sobre as mulheres do bando; após a
morte do tirano, seus filhos fundam o costume da exogamia (para que a história
não se repetisse) e promovem o pai assassinado à divindade, fundando desse modo
a religião organizada, independente da adoração da natureza. Nesse livro Freud
traça um paralelo entre religião e neurose obsessiva, mas sobretudo, o que é
mais importante e será retomado em seus escritos posteriores (O futuro de uma
ilusão, 1927 e Moisés e o monoteísmo, 1939) a vinculação dos fenômenos
religiosos com o psiquismo infantil repleto de fantasias, de magia, de deuses,
de demônios e de fantasmas; e, se ela ainda assim consegue trazer algum
conforto e diminuir a angústia existencial dos sujeitos no mundo de hoje, isso
pode ser creditado justamente à irracionalidade de seus conteúdos, à força
consoladora dessa ilusão.
Em sua obra “O futuro de uma ilusão (1927)”
dedicada exclusivamente à investigação da religião e da religiosidade enquanto
fenômeno ilusório, Freud nos esclarece que toda crença em cuja motivação
prevalece a realização de desejos sem levar em consideração sua correlação com
a realidade merece ser chamada de ilusão. E mais adiante ele afirma que as
doutrinas religiosas “todas elas são ilusões, são indemonstráveis, ninguém
pode ser forçado a tomá-las por verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão
improváveis, tão incompatíveis com tudo o que laboriosamente viemos a saber
sobre a realidade do mundo, que podem – levando-se devidamente em conta as
diferenças psicológicas – ser comparadas aos delírios” (1927, pág.268).
Freud também reconhece o trabalho benéfico prestado pela religião à cultura
humana quando contribuiu para “domar os instintos associais, embora não o
bastante” (1927, pág.276), mas considera primordial sublinhar o fato de que
mesmo em seu apogeu, quando a religião era a voz de Deus reconhecida por quase
todo o mundo, ainda assim não fez com que os humanos fossem mais felizes e mais
morais do que hoje, e aponta a evidência
– tantas vezes evitada – da hipocrisia reinante nos meios religiosos com seus sacerdotes
e suas práticas perversas.
A religião evoluiu ao longo do tempo, do animismo
passando pelo totemismo e chegando finalmente nos deuses antropomórficos da
antiguidade clássica, mas não perdeu suas características centrais, apenas
adaptou-as aos novos contextos. Somos herdeiros de uma tradição que parecia ter
sido o último patamar de desenvolvimento religioso: o culto monoteísta em suas
três versões mais marcantes da atualidade, o Judaísmo, o Cristianismo e o
Islamismo. A história continua com o mesmo cenário, um deus (Pai) que promete
cuidar de seus filhos se esses cumprirem sua parte no acordo, que oferece
respostas para o enigma da vida e da morte, e, que exige o cumprimento de leis
que asseguram o bom convívio entre humanos. Para Freud (1939) o grande mérito
de Moisés – um egípcio – foi ter “recriado” o monoteísmo e ter trazido a
novidade de um deus que escolhe um povo e com ele faz um pacto. O Cristianismo
que surge inicialmente como uma seita no seio do Judaísmo faz mais ainda para
aproximar esse deus de seu povo, o próprio deus num ato de amor vem habitar a
terra como um ser humano e se oferece em sacrifício para a remissão dos pecados
daquele que nele crer, e como ato memorial de seu sacrifício é feito uma
espécie de banquete totêmico em que a carne e o sangue do deus é o alimento que
realiza a comunhão entre céu e terra, mortalidade e imortalidade na vida dos
crentes. E seguindo nesse propósito de oferecer consolo e conforto nesse vale
de lágrimas que é a vida, o Catolicismo Romano trouxe de volta a família
inteira para dentro do culto – uma reedição mal disfarçada do velho politeísmo
pagão – um deus Pai, um deus Filho, uma deusa Mãe (a mãe de deus filho) e uma
legião de madrinhas e padrinhos (anjos,
santos e santas) para cuidar especificamente de determinadas áreas do
sofrimento humano, e trouxe também em seu bojo uma legião de demônios, como se
não bastasse os que nos habita desde sempre sob a forma de nossas pulsões
eróticas e destrutivas. Para qualquer lado que olharmos veremos sempre essa marca
do humano que o fenômeno religioso tenta dar respostas: a tremenda angústia
provocada pelo desamparo infantil, o terror e o medo diante do desconhecido que
nos inunda de dentro de nosso organismo e de fora pelo mundo real físico e
relacional.
Entretanto,
apesar do caráter ilusório, da superstição que promove e alimenta o engano e da
narcose provocada nos fiéis em sua relação com a opressão política que usa a
religião como justificativa para atos de terrorismo, nem tudo no que tange a
religião é negativo. Para o filósofo romeno e cientista da religião Mircea
Eliade (2001) o fenômeno religioso não só oferece conforto diante do
inexplicável como confere sentido à vida como um todo: todas as atividades
humanas são significadas a partir de sua sacralização, desse modo, a natureza,
a concepção, o nascimento, o trabalho, a sexualidade, a alimentação e a morte
ficam plenas de sentido no universo do homo religiosus, pois “o
comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo”
(2001, pág.88).
Para Eliade só existem
duas formas ou modalidades de ser no Mundo: o modo Sagrado e o modo Profano –
seriam estas as duas situações existenciais “assumidas “ pelos seres humanos
“ao longo da sua história” (2001, pág.20). Para ele, existe grandeza em ambas
as posições, tanto o homo religiosus – que acredita na existência de uma
realidade absoluta que transcende este mundo – quanto o Homem a-religioso
– aquele que rejeita a transcendência e se reconhece como “o único sujeito e
agente da História” (2001, pág.165) para quem o sagrado funciona como obstáculo
a sua liberdade – em ambos está presente a marca da religiosidade, seja como
afirmação ou negação; e, apesar da dessacralização do mundo religioso realizado
por uma das partes, não conseguiu evitar a sacralização do profano como se pode
observar na fé quase religiosa com que as pessoas defendem certas ideologias
políticas, filosóficas ou crenças seculares. Em suma, o indivíduo a-religioso
não está livre dos comportamentos religiosos e das mitologias, nem mesmo a
Psicanálise, que segundo Eliade mantém ainda o padrão iniciático típico das
religiões, trabalham com conteúdos e estruturas inconscientes que se assemelham
a figuras mitológicas e apresenta uma aura religiosa em seu aspecto
institucional.
CONCLUSÃO
Diante do que expusemos acima chegamos a
conclusão que a Psicanálise não se coloca como uma “visão de mundo” a ser
seguida e não propõe ou defende a existência de um “sentido de vida”. A visão
de mundo que a psicanálise adota é a visão científica – em oposição à visão
religiosa – seu lema é o autoconhecimento e sua missão a de iluminar recônditos
da alma humana ignorados por tantos séculos, a saber, o psiquismo inconsciente.
Que sentidos haveria na vida além daqueles
que o sujeito constrói a cada dia? O que o pai da psicanálise nos ensina a
respeito de propósitos ou sentido de vida pode ser resumido como um alerta
contra a ilusão e a superstição, como se ele nos dissesse: “conhece-te a ti
mesmo e aceita as tuas limitações; o tempo da infância e do pensamento mágico
já passou, teus pais não podem mais te salvar dos perigos, das dores e da morte
– aliás, nunca puderam – e, tampouco seus substitutos, os deuses e deusas, pois
eles fazem parte apenas de teus sonhos”. Quanto a felicidade tão almejada,
também pode esquecer, não há garantias de estados duradouros de felicidade, só
existem momentos felizes, uns mais outros menos, e, nem que você consiga ler
todos os livros de autoajuda que prometem uma vida feliz – e olha que não são
poucos – ainda assim você não conseguirá. A civilização se construiu sobre a
repressão dos instintos mas não os aboliu; fervilhando dentro de cada um de nós
ainda há desejos (libidinais e destrutivos) que precisam ser calados
(recalcados e reprimidos) para se viver em cultura, paga-se um preço por essa
dádiva da vida coletiva e esse preço é justamente um constante mal-estar na
vida cotidiana, incompatível com o projeto de felicidade vendido nas livrarias,
farmácias, bares, bocas-de-fumo e palestras motivacionais.
Se não há
sentido ou propósito para a vida e a Religião possui caráter ilusório e
infantilizado dentro do pensamento freudiano, tampouco há qualquer crítica
depreciativa àqueles que acreditam no contrário, Freud teve entre seus grandes
amigos e um dos primeiros analistas leigo (não médico) um pastor protestante, o
luterano Oskar Pfister, além do mais existem psicanalistas com credo religioso,
alguns bem famosos como a católica francesa Françoise Dolto, co-fundadora da
Sociedade Francesa de Psicanálise, uma dissidência da IPA na década de 1950,
formada por um grupo de cerca de quarenta psicanalistas entre os quais Donald
Winnicott e Jacques Lacan, que sendo ateu, se dizia “filho de padre” por ter
sido educado pelos irmãos Maristas.
A vida não tem sentido, tem valor, conferido
a ela por cada um de nós, seres humanos, de acordo com a trama de nosso romance
familiar e enredada nas vicissitudes de nosso desenvolvimento numa dada
cultura, principalmente daqueles primeiros anos de nossa vida.É isso que Freud
nos ensina, a deixar o mundo fantástico da infância no qual sua majestade o
bebê estava confortavelmente instalado em meio a satisfações alucinatórias,
sair do princípio do prazer e adentrar de vez no princípio de realidade,
sabendo que a vida não tem sentido mas nada impede que eu repita, parodiando o
poeta Gonzaguinha: “é bonita, é bonita e é bonita”, apesar de tanta feiura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O sagrado e o
profano: a essência das religiões. 5ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
EPICURO. Carta
sobre a felicidade (a Meneceu). 2ª reimpressão. Tradução e apresentação: Álvaro Lorencini. Enzo del
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Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
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GONZAGA
JÚNIOR, Luiz. O que é o que é? LP: Caminhos do coração. Rio de Janeiro:
EMI-Odeon, 1982.
PONDÉ,
Luís.Felipe. Propósito de vida e trabalho. In: Pós-graduação em
Filosofia e Autoconhecimento: uso pessoal e profissional. Porto Alegre, PUCRS-ONLINE,
2019.
Antonio Carlos Ferreira Lima, Psicólogo e Doutor em Literatura,
docente da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, UNCISAL. Endereço
para correspondência: Rua Jorge de Lima, 113, Trapiche da Barra, 57010-300. Endereço
eletrônico: fantonio8636@gmail.com . Maceió, junho de 2020.