O livro da jornalista mineira
Daniela Arbex, ganhadora de inúmeros prêmios nacionais e internacionais, e
atualmente atuando como repórter especial do jornal Tribuna de Minas, é no
mínimo chocante. Trás a tona um período da historia da saúde mental brasileira
desconhecido por muitos, pois, se para os que conheciam a triste realidade dos
hospícios brasileiros, marcados pela tortura e exclusão, descobrir o Centro
Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), ou o Colônia, como era chamado,
jamais imaginaria que poderia haver algo pior do que o já existente em termos de hospital psiquiátrico.
Nesta verdadeira casa dos horrores, que abriu suas portas em 1903, durante as
décadas de 1930 a 1980 contabilizou a morte de 60 mil pessoas em suas dependências.
É isso mesmo, em cinquenta anos de funcionamento, 60 mil pacientes internados
no Colônia morreram das mais diversas e brutais formas que se possa imaginar,
chegando mesmo a haver dias em que morriam mais de quinze internos, em um único
dia.
Segundo estimativa feita por
pesquisadores, 70% dos atendidos não sofria de transtornos mentais. Eram
geralmente indivíduos rejeitados pelo seu meio familiar ou grupo social, tais
como homossexuais, negros, pobres, mendigos, alcoolistas, prostitutas, mães solteiras
e desafetos de algum poderoso. Houve casos de esposas que foram trocadas por
amantes e acabaram internadas lá, mocinhas que perdiam a virgindade também eram
comuns, e até casos de alguém incômodo em questões de herança que foram
internados por seus familiares. Não havia diagnósticos nem direitos; ao entrar
no CHPB o paciente pertencia ao estado de Minas Gerais, perdia sua identidade,
suas roupas, sua relação com o mundo de fora, um verdadeiro campo de
concentração nazista ou comunista.
Um dos problemas do Colônia era a
superlotação, que na década de 1930 contava com 5 mil pacientes num espaço
destinado para duzentos, e, como quantidade é sinônimo de lucro, em vez de se
reduzir o número de internos, eles aumentaram a área dos leitos retirando as camas
substituindo-as por capim, desse modo o espaço ficava maior para acomodar mais
e mais pacientes. Essa medida ficou conhecida como “Leito-chão” e passou a ser
recomendado para outros hospitais psiquiátricos pelo poder público de Minas
Gerais em 1959. A maioria dos pacientes chegavam nos chamados “Trens de doido”,
termo cunhado pelo médico e escritor Guimarães Rosa, que no conto “Sorôco, sua
mãe, sua filha” de 1962 retrata bem essas viagens que cortavam o interior do
país e terminavam nos fundos do Hospital Colônia. Ao desembarcar do trem os
pacientes iam para a triagem onde eram separados por sexo, idade e
características físicas. Os homens tinham a cabeça raspada e todos – homens, mulheres e crianças – eram
obrigados a tomar banho coletivo gelado, sem respeito algum pelo pudor que
pudessem ter. Aqueles que podiam trabalhar eram recrutados para realizar
trabalhos não remunerados no hospital, nas fazendas e na cidade.
A eletroconvulsoterapia era
utilizada como forma de tortura ou castigo, mas também era usada para o
treinamento das auxiliares de enfermagem, quando pacientes eram escolhidos
aleatoriamente e iam para a fila do eletrochoque dado pelas moças aspirantes a
uma progressão funcional. Muitos pacientes morreram nesses “treinamentos”, como
conta a ex-funcionária Francisca Moreira dos Reis, que após provocar uma morte
e presenciar outras tantas pediu dispensa por não suportar mais ver tamanha
atrocidade. Lá também se morria de pneumonia, diarreia, fome, sede e frio; a
comida era racionada e imunda, os internos bebiam água direto do esgoto, e as
baixas temperaturas congelavam os corpos nus. Nesse ambiente que cheirava a
fezes e urina, os pacientes que adoeciam eram deixados à própria sorte,
esfarrapados e cobertos de moscas esperando a hora da morte. Nos milhares de
atestados de óbito pode-se ler “enterite do alienado”, termo criado para tentar
explicar a quantidade absurda de mortes por diarreia aguda, e, de quebra
eximir-se da culpa pelas condições que geraram a doença.
Nesse ambiente insalubre e
assassino, as mortes eram frequentes. Havia dias em que chegavam a morrer 16
pessoas em média por dia; e o destino dos cadáveres eram as salas de anatomia
das faculdades de medicina. Entre 1969 e 1980 foram vendidos 1853 corpos para
dezessete faculdades espalhadas por todo país. Durante todo inverno, com o
aumento do numero de mortes de pacientes, os lucros do hospital dobravam, pois
vendiam cada corpo ao equivalente hoje a duzentos ou trezentos reais. Esse
comércio incluía ainda a negociação de peças anatômicas, como fígados, corações
e esqueletos.
Não se pode afirmar que havia
algum tipo de tratamento psiquiátrico ou psicológico no Hospício de Barbacena;
afora algumas tentativas isoladas de promover conforto aos pacientes por parte
de funcionários ou religiosas mais piedosos, nada era feito para se tratar ou
reabilitar os pacientes. O que eles chamavam de tratamento era a tortura do
eletrochoque, a lobotomia que transformava homens, mulheres e crianças em
vegetais ambulantes, a ducha escocesa (jatos d’água em alta pressão) e banhos
gelados na madrugada: em suma, tortura. Como a autora afirma o Colônia “não
existia para fins terapêuticos, mas políticos”.
O psiquiatra italiano Franco
Basaglia, um dos pais da antipsiquiatria e do movimento de reforma
psiquiátrica, esteve no Colônia na década de 1970 e afirmou com convicção:
“Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo
presenciei uma tragédia como essa”. A tragédia acontecida em grande escala no
Hospício de Barbacena aconteceu em pequena escala em todos os lugares de nosso
país, e em muitos outros, que ainda hoje confundem tortura, isolamento e
exclusão com tratamento, e veem a loucura e o louco como um mal que deve antes
de tudo ser silenciado e não compreendido.