sexta-feira, 26 de março de 2010

Daniel Paul Schreber - Memórias de um doente dos nervos.

Daniel Paul Schreber (25 de julho de 1842 - 14 de Abril de 1911) foi um juiz alemão que entraria para a história, não por suas realizações no campo jurídico, mas pela descrição detalhada da patologia que apresentava, diagnosticada na época como demência precoce. Ele descreveu a segunda fase de sua doença mental (1893-1902), fazendo também uma breve referência à primeira fase (1884-1885) em seu livro "Memórias de um doente dos Nervos ( em alemão Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken). O livro se tornou um dos mais influentes na história da psicanálise, graças à análise feita por Freud. Não há um relato pessoal da terceira fase da doença (1907-1911), mas alguns detalhes sobre o assunto podem ser encontradas no Hospital Chart (em apêndice ao livro Lothane's). Durante sua doença foi tratado pelo Prof. Paul Flechsig (Leipzig University Clinic), o Dr. Pierson (Lindenhof) e Dr. Guido Weber (Royal Pública Asilo, Sonnenstein).
Daniel Paul Schreber provinha de uma família de burgueses protestantes, abastados e cultos, que já no século XVIII buscavam a celebridade através do trabalho intelectual. Muitos de seus antepassados deixaram obra escrita sobre Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais, onde são recorrentes as preocupações com a moralidade e o bem da humanidade. Os livros de seu bisavô tinham por lema a frase "Escrevemos para a posteridade". Seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861), era médico ortopedista e pedagogo, autor de cerca de vinte livros sobre ginástica, higiene e educação das crianças. Pregava uma doutrina educacional rígida e implacavelmente moralista, que objetivava exercer um controle completo sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de alimentação até a vida espiritual do futuro cidadão. Acreditava que seu trabalho contribuiria para aperfeiçoar a obra de Deus e a sociedade humana.

Excertos da Obra
> Considerando que tomei a decisão de, em um futuro próximo, solicitar minha saída do sanatório para voltar a viver entre pessoas civilizadas e na comunhão do lar com minha esposa, torna-se necessário fornecer às pessoas que vão constituir meu círculo de relações ao menos uma noção aproximada de minhas concepções religiosas, para que elas possam, se não compreender plenamente as aparentes estranhezas de minha conduta, ter ao menos uma idéia da necessidade que me impõe tais estranhezas.
> Minha mente é tão clara quanto a de qualquer outra pessoa. (....) pretendo que me sejam reconhecidas duas capacidades: por um lado, um inquebrantável amor à verdade, e por outro um dom de observação fora do comum.
> Uma vez tive uma sensação que me perturbou da maneira mais estranha quando pensei nela depois em estado de vigília. Era a idéia de que deveria ser realmente belo ser uma mulher se submetendo ao coito. Essa idéia era tão alheia a todo o meu modo de sentir que, permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado com tal indignação que de fato, depois de tudo o que vivi nesse ínterim, não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por influência de forças exteriores.
> “Os homúnculos que se ocupavam de abrir e fechar os olhos ficavam em cima dos olhos, nos supercílios e de lá puxavam as pálpebras para cima e para baixo, a seu bel-prazer, servindo-se de fios muito finos, semelhantes a fios de teia de aranha. (...) Quando às vezes eu não queria permitir este levantar e abaixar de minhas pálpebras, e reagia contra isto, esta atitude provocava a indignação dos "homúnculos" (...) Quando às vezes eu tentava limpá-los de meus olhos com uma esponja, isto era considerado pelos raios como uma espécie de crime contra o poder milagroso de Deus”.

Freud e a Paranóia
“E o paranóico constrói de novo o mundo não mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói com o trabalho de seu delírio, esta formação delirante que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução. Tal reconstrução após uma catástrofe é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente. Nas palavras de Schreber, houve uma grande mudança interna no mundo. Mas o indivíduo recapturou uma relação e freqüentemente uma relação muito intensa, com as pessoas e as coisas do mundo, ainda que esta seja agora hostil, onde anteriormente fora esperançosamente afetuosa.” (Freud, 1911)

Para saber mais
Freud, S. (1987). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas de S. F. Rio de Janeiro: Imago. “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides)” (1911c).
Lacan, J. (1959/1998). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Em Escritos (pp.537-590). Rio de Janeiro: J. Zahar.
Lacan, J. (1985) O seminário: livro 3: [as psicoses 1955-1956]. Rio de Janeiro: J. Zahar.
Mannoni, O. (1973). Chaves para o imaginário. Petrópolis: Vozes.
Melman, C. (2006) Retorno a Schreber. Porto Alegre: CMC Editora.
Niederland, W. G. (1981). O caso Schreber: um perfil psicanalítico de uma personalidade paranóide. Rio de Janeiro: Campus.
Santner, E. L. (1997). A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Schreber, D. P. (2006). Memórias de um doente dos nervos. Tradução e introdução de Marilene Carone. 3.e.d São Paulo: Paz e Terra.
Na web: http://www6.ufrgs.br/psicopatologia/schreber/index.html

MELANIE KLEIN - A açougueira inspirada!


> 30 de março de 1882, nasceu em Viena Melanie née Reizes (1882-1960), futura Melanie Klein, psicanalista britânica de origem austríaca. Seu pai, Moritz Reizes, era um médico judeu polonês, originário de Lemberg, na Galícia, que se tornou clínico geral graças a uma ruptura com pais tradicionalistas. Sua mãe Libussa Klein, judia eslovaca brilhante e dominadora, dedica-se, por necessidades familiares ao comércio de plantas e répteis. Foi a quarta entre os filhos desse casal que não se entendia. Quando, por sua vez, se tornou mãe, também sofreria em sua vida particular as intrusões de sua mãe, personalidade tirânica, possessiva e destruidora.
> A juventude de Melanie foi marcada por uma série de lutos.Tinha quatro anos quando sua irmã Sidonie morreu de tuberculose com a idade de 8 anos; tinha 18 quando o pai, debilitado há longos anos, morreu, deixando-a com a mãe; tinha 20 quando seu irmão Emmanuel, morreu esgotado pela doença, pelas drogas e pelo desespero.
> Melanie estudou de início arte e história na Universidade de Viena, porém as dificuldades econômicas que se seguiram à morte do pai parecem ter sido a causa de sua renúncia aos estudos de medicina, que ela decidira empreender com o objetivo de ser psiquiatra.
> Em 1903, casa-se com Arthur Klein, engenheiro químico de caráter sombrio, que ela conhecera dois anos antes, e, do qual se divorciaria em 1926.
> Em 1914 faz sua primeira leitura de um texto de Sigmund Freud, “Sobre os sonhos”, e dá início a sua análise com Sandor Ferenczi. Essa análise foi interrompida devido à guerra. Ela recomeça, em 1924, mas em Berlim, com K.Abraham, que morreria no ano seguinte. A análise é concluída em Londres, com S.Payne.
> Em 1920, ela participou em Haia do Congresso Internacional da IPA. Ali, encontrou Hermine von Hug-Hellmuth e principalmente, graças à recomendação de Ferenczi, Karl Abraham. Este acabava de fundar, com a ajuda de Max Eitingon, a famosa policlínica do Berliner Psychoanalytisches Institut (BPI), onde eram acolhidos muitos pacientes traumatizados pela guerra. Atraída pela personalidade de Abraham e pela vitalidade do grupo de analistas que o cercava, Melanie Klein se instalou, em 1921, na capital alemã. Um ano depois, tornou-se membro da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft (DPG) e, em setembro de 1922, assistiu ao VII Congresso da IPA, durante o qual participou das primeiras discussões sobre a questão da sexualidade feminina, depois da contestação das teses freudianas por Karen Horney.
> Em 17 de dezembro de 1924, Melanie foi a Viena para fazer uma comunicação sobre a psicanálise de crianças na Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV), e nessa ocasião confrontou-se diretamente com Anna Freud. O debate estava então aberto, e trataria do que “devia” ser a psicanálise de crianças: uma forma nova e aperfeiçoada de pedagogia (posição defendida por Anna Freud) ou a oportunidade de uma exploração psicanalítica do funcionamento psíquico desde o nascimento (como queria Melanie Klein)?
> Em setembro de 1927, durante o X Congresso Internacional em Innsbruck, o conflito se ampliou: Klein apresentou uma comunicação, “Os estádios precoces do conflito edipiano”, na qual expunha explicitamente suas discordâncias com Freud sobre a datação do complexo de Édipo, sobre seus elementos constitutivos e sobre o desenvolvimento psicossexual diferenciado dos meninos e das meninas. Em outubro de 1927, apoiada pela renovada confiança de Jones, Melanie foi eleita para a BPS.
> Em janeiro de 1929, começou a tratar de uma criança autista de quatro anos, filha de um dos seus colegas da BPS, à qual deu o nome de Dick. Logo percebeu que ele apresentava sintomas que ela nunca havia encontrado. Não expressava nenhuma emoção, nenhum apego, e não se interessava pelos brinquedos. Para entrar em contato com ele, colocou dois trenzinhos lado a lado e designou o maior como “trem papai” e o menor como “trem Dick”. Dick fez o tem com o seu nome andar e disse a Melanie: “Corta!”. Ela desengatou o vagão de carvão e o menino guardou então o brinquedo quebrado em uma gaveta, exclamando : “Acabou!”. A história desse caso se tornaria célebre, por mostrar como alguns psicanalistas não conseguem dar aos filhos o amor que esperam deles.
> Em 1932, Melanie Klein publicou sua primeira obra síntese, “A psicanálise de crianças”, na qual expunha a estrutura de seus futuros desenvolvimentos teóricos, sobretudo o conceito de posição (posição esquizo-paranóide/posição depressiva), assim como sua concepção ampliada da pulsão de morte.
> Começam os conflitos com sua filha Melitta Schmideberg, casada com Walter Schmideberg, amigo da família Freud e de Ferenczi, que tornou-se analista. Sem perceber, Melanie repetiu com sua filha o comportamento que Libussa tivera com ela. Foi por ocasião de uma retomada da análise com Edward Glover que Melitta se afastou de Melanie.
> A partir de 1933, Melanie Klein, que sofria os ataques incessantes de Glover e de Melitta, via com terror a chegada a Londres dos analistas vienenses e berlinenses que fugiam do nazismo. Confidenciou a Donald Woods Winnicott que pressentia, na instalação desses refugiados que lhe eram na maioria hostis, a iminência de um “desastre”. Alguns meses depois da chegada dos Freud a Londres, as hostilidades irromperam efetivamente
> Nunca tendo se reconciliado com sua filha Melitta, deixando inacabada uma autobiografia parcelar e seletiva, Melanie Klein morreu de câncer do cólon em Londres, a 22 de setembro de 1960.
> Virginia Woolf deixou em seu “Diário” um retrato de Melanie Klein que permite entrever sua força, de outro modo silenciosa e invisível: ela era “uma mulher de caráter, com uma espécie de força meio oculta - como direi ?-, não uma astúcia, mas uma sutileza, alguma coisa trabalhando por baixo. Uma tração, uma torsão, como uma vaga sísmica: ameaçadora. Uma mulher encanecida e brusca, com grandes olhos claros e imaginativos”.
> Maiores informações na web: http://psicanalisekleiniana.vilabol.uol.com.br/